Em diversas ocasiões, Alberto Dines menciona, neste Observatório, a imparcialidade e a ética no meio jornalístico. A notícia, portanto, deve ser veiculada desapaixonadamente, não sacrificando a sua interpretação à própria conveniência, nem à de outrem. O romantismo anunciado por Dines contrasta com o cotidiano das redações de jornais (com raras exceções), onde uma opinião torna-se um fato e logo este fato/opinião é notícia. Tal fenômeno, que submete o jornalismo aos interesses do mercado, foi muito bem analisado por Pierre Bourdieu em Sobre a televisão.
Nas noites do Fantástico, da Rede Globo tem se destacado o quadro da grande reportagem. Munidas de aparato técnico, estas reportagens destacam-se por expor, em horário nobre, a podridão de um país onde o ‘jeitinho’ é valorizado como condição para o sucesso. De maracutaias nos contratos de concessão de lombadas eletrônicas a dinheiro na cueca, passando por esquemas de turismo sexual internacional, o jornalismo investigativo da Rede Globo escancara à população o que já é senso comum, ou seja, que somos uma sociedade caracterizada pela ética do mais forte. Avesso ao brasilianismo ultra-exacerbado do mestre Darcy Ribeiro, está nas rodas de conversas nas feiras livres de bairros humildes, também no bate-papo entre empregadas domésticas e mecânicos, que roubamos, mentimos, fraudamos…
Quem viveu os anos de chumbo da ditadura militar brasileira escutou por diversas vezes que a Rede Globo era o quarto poder. Diversos trabalhos acadêmicos analisaram as consequências da proximidade da família Marinho com os governos militares e logo, com o fim do nefasto regime militar, da aproximação da Globo com os governos civis – exemplo disso, a participação e influência da Globo nas eleições presidenciais de 1989.
Uma aula de cidadania
Evidentemente (e o evidente mente) que as organizações Globo não mudaram sua postura em relação ao poder após a morte do seu fundador Roberto Marinho. Ao contrário, a Globo nunca esteve tão próxima do poder central como agora. Basta analisar a cobertura jornalística da visita de Barack Obama ao país.
O seu jornalismo investigativo nada possui de ingênuo e sua imparcialidade tampouco existe, pelo menos nos moldes que Alberto Dines considera imparcial. Os escândalos apresentados sistematicamente no Fantástico revelam a força da emissora no tecido social brasileiro. A Globo, definida historicamente como o quarto poder no país, passa a ser o primeiro poder, capaz de embargar obras, mudar sentenças judiciais, influenciar a votação de leis no Congresso Nacional e, sobretudo, formar uma opinião popular sobre um tema.
E daí? A Globo consolida-se como o primeiro e mais importante canal de opinião e informação no Brasil. Seu jornalismo investigativo investiga o que os grupos políticos dominantes determinam; a população assiste, nas noites do Fantástico, a matérias jornalísticas chocantes de corrupção explícita – porém, aquela corrupção que satisfaz aos grupos políticos ligados à Globo apresentar ao grande público.
E daí? Devemos demonizar a Globo por ela selecionar que tipo de corrupção deve ser apresentado? Devemos boicotar e não assistir ao ‘show da vida’ de cada domingo pois nele a roubalheira que passa é de apenas um grupo político, e não dos diversos grupos políticos? Devemos nos apegar aos conceitos românticos alertados por Alberto Dines e desmerecer a ‘grande reportagem’ dos domingos devido à sua parcialidade por apresentar ‘apenas’ um lado da fraude?
Por mais parciais, tendenciosas e políticas que possam ser as reportagens investigativas da Globo, jamais se pode cair no ostracismo da causa nobre. Ao povão, essa grande massa de analfabetos funcionais que tem na televisão o grande irmão, conforme George Orwell em 1984, resta pouco senão os comentários da segunda-feira sobre as grandes reportagens do domingo no Fantástico. A essa massa de não leitores (menos de 8% da população brasileira lê pelo menos um livro por ano), a Globo, por motivos questionáveis, está dando uma aula de cidadania.
******
Economista e doutor em Geografia, Natal, RN