Avanços da tecnologia, principalmente no terreno das imagens, se sucedem numa velocidade superior à capacidade de absorção pelo público usuário. As mutações são de tal ordem que a expectativa por conta da próxima invenção já se encarrega de abater parte do impacto gerado pela mais recente oferta.
A primeira conseqüência, derivada da espiral da onda tecnológica, parece produzir inibição criadora, em lugar de propiciar expansão criativa. Talvez concorra para tal efeito o próprio ritmo acelerado de novas máquinas, impedindo a exploração profunda das potencialidades dos suportes tecnológicos já existentes, ou seja, não há tempo necessário para o amadurecimento, à altura de permitir a extração plena dos recursos da ‘ferramenta’ anterior.
A telecracia e a videoestesia
A avaliação inicial sugerida nos parágrafos acima decorre do resultado já constatado: nenhuma das mirabolantes invenções no espectro multimídia conseguiu, no plano da criação artística, gerar obra portadora de perfil efetivamente renovador ou transformador. É inegável a contribuição da tecnologia multimídia nos campos, por exemplo, da ciência e da informação, porém é igualmente irrefutável a constatação de que, no âmbito da arte, o fenômeno não se repete, sequer timidamente.
Na esfera da medicina, a qualidade das imagens e o alcance meticuloso de filmagens internas asseguram, progressivamente, diagnósticos cada vez mais precisos e preventivos. No tocante à tecnologia espacial, verifica-se outra deslumbrante contribuição. Dado inconteste é também a eficiência com que a informação passou a circular para um contingente populacional em permanente expansão. Todavia, (e a questão retorna) a aridez inventiva perpassa os caminhos da arte.
Afora outros teóricos que sobre o tema já se pronunciaram – a exemplo de Umberto Eco, Jean Baudrillard e Paul Virilio –, dois nomes de menor ressonância (mas não de menos importância) se somam aos citados, destacando-se com reflexões bastante rentáveis a respeito de uma modelagem cultural que elegeu a imagem e a tela como avatares da contemporaneidade. Refiro-me a Derrick de Kerckhove e Philippe Dubois.
O primeiro, canadense e sucessor de Marshall McLuhan, à frente do Centre for Tecnology of Toronto, contribui com eficientes angulações críticas em A pele da cultura (Lisboa, Relógio D’Água, 1997), obra na qual desenvolve o conceito de ‘telecracia’ (sistema governado pelo poder em rede). O segundo, diretor do Centro de Formação e Pesquisa em Cinema e Audiovisual, na Universidade de Paris III, fornece eficazes pontuações analíticas, reunidas no livro Cinema, vídeo e Godard (Cosac-Naify, 2004).
Kerkchove, em outra publicação, ‘A arquitetura da inteligência: interfaces do corpo, da mente e do mundo’, ensaio que integra a coletânea de conferências, sob organização de Diana Domingues (Arte e vida no século XXI: tecnologia, ciência e criatividade, UNESP, 2003), formula o conceito de screenology (ou ‘telalogia’), obviamente uma percepção de quem, anos antes, reconhecia a cultura ocidental orientada pelo regime da ‘telecracia’. De Dubois, extraímos a seguinte passagem:
‘As telas se acumularam a tal ponto que apagaram o mundo. Elas nos tornaram cegos pensando que poderiam nos fazer ver tudo. Elas nos tornaram insensíveis pensando que poderiam nos fazer sentir tudo’ (pág. 67).
Outra rota
O cruzamento dos dois teóricos induz, com o reforço oriundo do apelo que o imaginário brasileiro dedica à imagem, ao entendimento de que, na experiência cultural brasileira, a ‘telecracia’ evoluiu para o que sugiro chamar de ‘videoestesia’. Recorro à construção híbrida (latim/grego), com o intuito de fixar a profunda relação entre o poder da imagem (‘telecracia’) e o impacto subjetivo cujo efeito consiste em acentuar o grau de ‘dependência psíquica’ do público, distanciando este de aprofundamentos comunicacionais no campo do código verbal, instaurando preocupante embate: suportes tecnológicos sofisticados x comunicação verbal rudimentar.
Em outros termos, significa dizer que a subordinação crescente ao regime das imagens acentua, a médio e a longo prazos, a fragilização das potencialidades cognitivas e perceptivas, em favor da intensificação dos agentes mobilizadores da excitação. É exatamente na relação tensional entre ‘imagem’ e ‘deperecimento verbal’ que se expande a ‘videoestesia’.
Para não incorrer em falta de clareza, explicito que ‘videoestesia’ representa uma condição subjetiva do receptor cujo olhar, por deslizar indefinidamente pela cadeia de imagens, se sente acometido de estado de torpor: anestesia crítico-reflexiva atrelada a enfraquecimento interpretativo. Em última análise, o conceito proposto é extensão do que Dubois acentua na passagem já transcrita na qual o autor sinaliza para a ‘cegueira’ e a ‘insensibilidade’.
O problema para o qual pretendo atrair atenção reside em saber-se até que ponto, nos chamados países ricos e desenvolvidos, o tema vem sendo objeto de políticas culturais e, na contrapartida, saber-se se tal questão é pauta de reflexão entre os pares responsáveis pela política cultural no Brasil.
A impressão primeira é a de que, entre nós, o assunto ainda não sensibilizou. Ao contrário, a tendência segue na direção de políticas exaltadoras da ‘imagem’ e do consumo de todas as ‘engenhocas’ que surjam no balcão de vendas. A próxima será telinha de TV no painel frontal de automóveis, afora celulares e produtos afins. O propósito parece o de preencher o mínimo de tempo sobrante com ‘imagens’ enquanto o real trilha outra rota. Se a tendência perdurar, pagaremos barato por todas as novidades tecnológicas que forem oferecidas, mas, historicamente, pagaremos muito caro pelo devaneio irresponsável.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio)