A excessiva fragmentação no processo da produção da notícia em televisão leva, muitas vezes, a situações curiosas. Na reunião de pauta, pensa-se uma coisa. Na rua, o repórter puxa por um outro ângulo e escreve uma outra matéria – bem diferente da pensada naquela reunião – e a edição que nem sempre sabe o que foi pensado ou imaginado – mexe aqui e mexe ali e acaba estruturando outra matéria. É o famoso três em um. Ou melhor, em nenhum.
O dia-a-dia da reportagem costuma ir do tédio ao estressante – se é que essas são coisas exatamente diferentes. A imprevisibilidade e a sempre urgência do factual, as pautas forçadas na produção – em que o repórter tem que calibrar o real para, depois, transformá-lo em notícia – e aquelas outras forçadas pela direção da TV (as recomendadas, que geralmente nenhuma importância jornalística têm) dão o tom diariamente do repórter que vai para a rua para tentar voltar para a redação com um bom material. Claro que há as boas e bem produzidas pautas, mas que, com certeza, não são a maioria. Longe disso.
As peculiaridades do telejornalismo – sua linha de produção excessivamente compartimentada – significam para o repórter, na verdade, obstáculos a serem enfrentados diariamente. Diferentemente do impresso e, principalmente, do rádio, o repórter de TV está submetido a uma cadeia de dependências que diretamente interferem no resultado de seu trabalho. Ele depende de imagens produzidas por outro profissional, uma edição que, também ao contrário dos outros veículos, geralmente percebe seu trabalho como um conjunto de fragmentos a ser estruturado – e ainda está, na essência, muito mais engessado dentro de uma lógica de obra fechada (o telejornal), que já está espelhada desde o início do dia, quando não já não vem assim do dia anterior.
Alguns anos de rua como repórter de rádio e depois como editor de texto em televisão mostraram-me uma coisa: o repórter de TV pode muito pouco. A pauta, especialmente em telejornalismo, é mesmo uma ordem de serviço controlada e acompanhada de muito perto. Enfoques, recortes, entrevistados… tudo é previsto e determinado. Quer mudar o foco ou mesmo a pauta? A briga a ser comprada com a redação é das boas e ele – imagine, na rua – que assuma a responsabilidade. Afinal, quem fecha o jornal está contando com o VT.
Tudo isso é explicação para muita coisa. Mas não pode justificar, entretanto, a postura acomodada e passiva do repórter diante do acontecimento. E aí, me parece, está um dos nós sérios do telejornalismo. O repórter – principalmente nas emissoras e telejornais regionais – cada vez mais se distancia de sua função principal de mediador do real. De quem intervém, no sentido de problematizar e questionar o acontecimento para oferecer melhores possibilidades de compreensão ao telespectador.
É interessante perceber que, na televisão, o repórter geralmente é estimulado mais a colocar-se como um agente da narrativa, não da apuração. A sensação é que a produção da pauta – marcação de entrevistas, locações e apuração e checagem de informações – dispensaria o repórter do trabalho de busca da notícia. Mesmo porque, o enfoque e o direcionamento geral da matéria já estão dados, ou seja, o real – independentemente do que o repórter observa na externa – já está dado.
‘Pode’ e ‘não pode’
Por ter esta função ressaltada, de agente designador da notícia, a quem cabe não descobrir, mas contar, o repórter se ocupa muito da estruturação frasal, da arquitetura da matéria. Da adequação entre o texto e imagem – guerra santa dentro do telejornalismo – e do cuidado com o recorte solicitado. Já sai da TV com um duplo desafio: amarrar corretamente, mas tentando evitar fazer o arroz-com-feijão de sempre. Quer dizer, tem que ser simples e criativo. Correto e inventivo.
Um dos efeitos da busca do telejornalismo por soluções e modelos narrativos foi o surgimento de uma estrutura estandardizada e homogeneizadora da notícia na televisão. A seqüência off-passagem-sonora impôs-se praticamente como regra. Pasteurização do real, esta estrutura narrativa só alimenta os riscos – ainda mais acentuados na mídia eletrônica – de simplificação e reducionismo do acontecimento. O diacho é que o ‘esqueminha’, geralmente, funciona. Uma abertura, onde se conta o principal, acompanhada de uma passagem (para contextualizar ou para as informações para as quais não se tem imagem) e a(s) sonora(s). Não é à toa que virou modelo comum de construção de matéria em telejornalismo.
O que se percebe é que hoje se tenta, de verdade, fugir desta estrutura básica, mas as mudanças são ainda muito tímidas. Mas o que mais um repórter iniciante ouve na TV é ‘pode’ e ‘não pode’. É muita amarração e engessamento para um tipo de atividade que lida com um tipo de informação instável e, por natureza, efêmera.
Procuram-se personagens desesperadamente
Além do que pode e do que não pode tem o que é obrigatório. E ter personagem é obrigatório. Afinal, alguém precisa dar legitimidade a história contada. Creio que não é exagero dizer que, muitas vezes, a produção dos telejornais gasta mais tempo tentando encontrar uma boa alma que tope gravar que vive esta ou aquela situação do que estruturar a pauta a partir das informações essenciais. Ou seja, o periférico da notícia está demandando mais trabalho do que aquelas apurações que dizem respeito ao lead.
Obviamente que, em tese, o repórter pode rebelar-se, questionar todo este circo predisposto para a estruturação da sua notícia e buscar caminhos próprios. Mas bem sabemos que do outro lado da linha tem alguém que vai defender o previsto com unhas, dentes e línguas ferinas.
Personagens – essa categoria curiosa que o telejornalismo criou – parecem ser algo aquém e além do que histórica e tradicionalmente o jornalismo categorizou como fontes e entrevistados. Quem produz TV sabe que a relação é marcada por momentos de cumplicidade (não em relação à informação, o que é comum a todo o jornalismo) em relação ao próprio processo de produção da notícia. Depois disso, fica difícil imaginar que o repórter terá autonomia para alguma coisa.
Recuperando a identidade
Não se deve considerar, no entanto, esta a questão principal. A preocupação aqui reside em discutir a postura que parece, muitas vezes, faltar ao repórter de TV como senhor da notícia. De alguém que realmente foi até o local para buscar a notícia em sua essência informativa. Ou seja, repórter que não tenha a cara-de-pau de voltar para a redação com o mesmo nível e qualidade de informações que já estava na pauta.
Pergunte a um chefe de reportagem de TV que qualidades considera importantes na hora da contratação de um repórter. Ele vai enumerar muitas: ser ‘bom de vídeo’, fluência, boa voz, ter iniciativa. Talvez a qualidade de ser instigante, bom apurador, bom, enfim, de conteúdo, apareça na quarta ou quinta posição. E faz sentido. A imagem do próprio repórter não pode ser um ruído na matéria a ponto de desviar a atenção do telespectador. O estético tem, claro, lugar privilegiado na televisão. Mas, sem querer exagerar, creio que anda bastando muito.
O primeiro passo para que o repórter de TV volte a se sentir senhor da notícia que produz, creio, deve se dar na direção de vencer os impedimentos e isolamentos impostos pela estrutura compartimentada da produção da notícia. Na verdade, a precariedade das condições de trabalho do jornalista também tem aí muito peso, mas ele deve buscar vencer essa fragmentação do processo tentando participar e influenciar nas decisões sobre o encaminhamento da pauta. Questionar a roteirização prévia de sua matéria, duvidar de personagens ansiosos para falar (essas sereias de Ulisses que, vez ou outra, encantam os produtores e os levam a pautar maluquices) e postar-se como repórter na acepção completa da palavra. Alguém que busca, que investiga, que questiona e que duvida.
Telejornalismo de mostração
Pois este é o real papel da mediação. O repórter lida é com o real, com o acontecimento. É sujeito que antes de preocupar-se em contar (e avaliar se vale a pena contar) tem que saber, tem que conhecer.
Há repórteres que gastam exclusivamente o tutano para imaginar onde podem enfiar uma passagem na matéria para poder aparecer no vídeo. Esses geralmente são os fiéis cumpridores de ordens, nunca apuram o que está além da pauta e acreditam mesmo que quem tem que buscar e encontrar a informação é o pessoal da redação. São totalmente reféns das armadilhas da narrativa em telejornalismo. Acreditam com firmeza que o trabalho deles seja diariamente o de segurar um microfone, dar uma ordem naquele caos informativo e estruturar uma matéria que tenha, pelo menos, coerência.
Muito disso resulta da natureza espetacular e marcadamente mosaical da televisão. Muito disso resulta da acomodação e de doses elevadas de narcisismo do repórter. A associação dessas duas coisas resulta num telejornalismo exclusivamente de mostração e que pouco atende ao telespectador. É a perdição de ótimas oportunidades de tornar este mundo menos opaco e confuso, numa mídia incrivelmente poderosa.
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Professor da PUC-Minas e diretor da PUC-TV