Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O triunfo estatístico do banal

Na quinta-feira (1/4), era um júbilo só o sistema Globo: a final doBig Brother 10, exibida dois dias antes, dera à rede de TV 40 pontos de média de audiência. ‘Menos que as edições anteriores (na ordem: 59, 45, 55, 56, 57, 51, 48 e 46 de média)’, comentava uma coluna do jornal, ressalvando: ‘Em compensação, a explosão na internet impressiona: foram mais de 154 milhões de votos, um recorde mundial emreality shows. Com isso, o programa se consagra como o único da TV brasileira quecumpre plenamente o objetivo transmídia. E isso não é pouco’. De fato, nada aí é pouco: ‘Em todas as dez edições doBig Brother Brasil, houve um total de 2 bilhões 558 milhões 958 mil e 35 votos na Globo.com.É muita coisa‘.

Não se trata mais de fazer ressoar o bordão da crítica culturalista baseada de ‘bons’ e ‘maus’ conteúdos, para despertar a adormecida consciência educacional do público e terminar com uma sentença condenatória do show televisivo. Esse tipo de análise parece-nos hoje rigorosamente inútil ou serve apenas para alimentar de vez em quanto os surtos de moralismo cultural de setores reduzidos da esfera pública.

Pode ter alguma utilidade, entretanto, chamar a atenção para a persistência desse fenômeno mobilizador de audiência com as revelações dos cientistas políticos Amaury de Souza e Bolívar Lamounier no recém-lançado livroA classe média brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, em que ambos traçam um perfil da chamada classe C, isto é, os 26,9 milhões de brasileiros que, com 46% da renda nacional, superam os 44% das classes A e B. Segundo o estudo, trata-se de indivíduos sem qualquer consciência (política) de cidadania, mas que se reconhecem como cidadãos consumidores.

Estratégias de espetacularização

Seria muito interessante determinar de que estrato socioeconômico provém majoritariamente o público doBBB. Mas ainda que não se localize a sua origem nessa indigitada classe C, as tendências políticas e culturais parecem ser as mesmas, ou seja, uma vontade de se fazer presente na esfera pública, desde que essa ‘presença’ não tenha nada a ver com os mecanismos clássicos da cidadania, que implicam participação coletiva na cena pública com o objetivo de influir sobre o controle social: mandatos parlamentares, vigilância sobre o orçamento etc. Com um peculiar sistema de votação para a eliminação de seus figurantes, oBBB cria um espetáculo participativo em que o envolvimento do público, por si só, faz as vezes de um livre movimento de atuação cidadã.

A utilização massiva da internet, conjugada com a audiência televisiva tradicional, é uma novidade mercadológica. Mantém-se inalterado, entretanto, o ponto de vista da crítica de décadas passadas, segundo o qual a cultura de massa ‘espetaculariza’ a vida, ao mesmo tempo em que suas práticas estéticas fazem com que o afeto seja o principal apelo necessário à circulação de produtos e processos do mercado. Ovalor de sujeito é dado pelo acesso às novas tecnologias (agora, a internet), que propiciam a emergência de um ‘ser comum’ centrado no afeto, na sensibilidade – e na banalidade.

Na mídia convencional (que alguns chamam de ‘jurássica’), cabe à retórica da propaganda ou da publicidade emocionar pelo discurso banal. As estratégias de espetacularização acabam por produzir um novo tipo de realidade que reorienta hábitos, percepções e sensações. A mídia deixa de apenas informar, para começar a fazer parte como sujeito ativo das relações sociais. É desta maneira que a figura do consumidor começa a adquirir um novo conceito de sujeito social configurado pelo mercado e confinado à esfera do consumo.

Uma espécie de gladiador

Apesar das aparências de mudança introduzidas pela internet, essa figura do consumidor é a mesma para o sistema da mídia. Mesmo que aumente ofeedback ou a capacidade de resposta dos usuários de TV e internet (e esta de fato é enorme agora), o marketing midiático continua voltado para o seu público-alvo como uma massa a ser incorporada para efeitos de consolidação da audiência.

Quando o jornal diz que oBBB é ‘o único da TV brasileira que cumpre plenamente o objetivo transmídia’ está na verdade assinalando o valor ‘moral’ exclusivo da programação televisiva: ser um curto-circuito de si mesma. Embora seja apenas uma instância singular do sistema industrial comercial, o programaBBB está nos dizendo que a mídia quer ser apenas ‘mais-mídia’ (não só televisão, mas televisão com internet), que não há qualquer finalidade social ou cultural além de sua própria realização técnica.

É natural que os 154 milhões de votantes doBBB 10 possam sentir-se como sujeitos que exercem democrática e comodamente, de dentro de suas casas, uma livre opção: isso ou aquilo, fulano ou fulana, homossexual ou homofóbico. A tecnologia digital amplia em muitos graus a mais a velha intimidade à distância propiciada pela telenovela. Demouse em punho, o espectador define-se de certo modo como o público da arena romana que decidia sobre vida ou morte do gladiador derrotado.

E talvez não seja absurdo pensar no participante doBBB como uma espécie de gladiador que se vê no espelho da mídia, dia após dia encerrado numa casa, tentando provar para concorrentes e telespectadores que ele é umsi mesmo tal e qual se mostra, sem encenação. Nenhuma fera ameaça de fato os participantes e, no final, o vencedor torna-se um pequeno milionário. Para o espectador (classe C?), a moral da história deve ser buscada na animalidade do banal.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro