A razão pela qual a TV por assinatura até hoje não decolou no Brasil é simples. Nos anos 1980, os novos mecanismos de distribuição de sinais foram tratados no mundo inteiro como uma oportunidade para os produtores de conteúdo. Aqui, eles foram vistos como um negócio exclusivo dos prestadores de serviço de distribuição de sinais.
Foi assim que, durante a década de 1980, criaram-se nos EUA mais de 350 redes internacionais de televisão. Redes, a princípio, bem pequenas, como a CNN, a Discovery ou a Cartoon, que poucos anos depois passaram a integrar ou comandar as maiores corporações de mídia do mundo. E foi assim que, no Brasil, nenhuma rede internacional foi construída em tempo algum. Para o usuário brasileiro, os serviços de TV por assinatura tornaram-se uma grande feira de importação de conteúdo e de modelos de conteúdo. E os canais então criados acabaram o sendo à semelhança dos padrões estéticos e narrativos primários, desenvolvidos há anos pela TV aberta.
O foco sobre o serviço, e não sobre o conteúdo, acabou transformando a TV por assinatura brasileira num negócio irrelevante do ponto de vista comercial (menos de 7% do país está cabeado, contra 96% da Europa e dos EUA) e grotesco do ponto de vista cultural. A TV por assinatura absorveu da TV aberta o gosto por zombar da inteligência do espectador. A única arma que encontrou para se qualificar foi tratar seu interlocutor como débil mental. O resultado, 15 anos depois, é conhecido por todos: no pouco que produziu, a TV por assinatura emburreceu o seu espectador – e fez isso, ainda por cima, com o olhar estúpido de uma superioridade inexistente. Conseguiu o impossível: dar alguma legitimação às bobagens praticadas, com muito maior autenticidade, pela TV aberta.
Conteúdo para diversas plataformas
A abertura das transmissões digitais terrestres está correndo o sério risco de reproduzir esse fenômeno. O debate instalado no início não foi à frente. Deixou-se politizar e criar polarizações que acabaram favorecendo a manutenção de um modelo que já vigorava há 60 anos. No caso da TV por assinatura, o espectador foi levado a acreditar que nada iria mudar – e nada acabou mudando mesmo, no Brasil, enquanto nos outros países criava-se uma poderosa rede de emissoras que hoje estão em praticamente todos os sistemas de TV por assinatura do planeta. No que diz respeito à TV digital, o usuário está sendo levado a crer que o que existe de novo é a imagem dos programas que ele já conhece. Essa imagem vai melhorar bastante graças às transmissões em HDTV. O resto é quase irrelevante.
Essa exacerbação dos mecanismos de defesa dos modelos de negócio existentes vai atrasar a televisão digital terrestre brasileira em muitos anos – tanto quanto atrasou a TV por assinatura. Corre o risco de, tal como aconteceu naquele caso, aumentar a nossa dependência por conteúdo estrangeiro e inibir a nossa capacidade de tirar proveito das novas plataformas.
A má notícia é que, se tal coisa acontecer, será irremediável. Perderemos a maior oportunidade que apareceu em décadas de fazer boa televisão, de criar e exportar modelos de construção de conteúdo para diversas plataformas. A mesquinharia na defesa de um estado de coisas que não tem condições reais de se sustentar está na rota de atrofiar a posição brasileira no desenvolvimento da televisão digital terrestre em escala global.
Horário nobre desaparece
O povo brasileiro tem uma relação muito estreita com a sua televisão. Deu a ela um poder e um status que encontram poucos paralelos no mundo. Isso aconteceu por razões circunstanciais. A televisão aberta brasileira pôde crescer (ainda que, de fato, isso não tenha sido culpa dela) graças ao desastre social do país. Desgraçadamente, a televisão não está respondendo na mesma moeda. Durante muito tempo, ela foi capaz de se autodefinir, sugerindo ao espectador que seus limites criativos estão dentro do que lhe é oferecido. Tal esforço agora transcende a programação. Trata-se de dizer a esse usuário tão fiel, e que paga tão bem a sua conta, que as plataformas digitais servem para reproduzir o que já existe, só que com imagem e som bem melhorados.
Isso não é verdade. E se, num primeiro momento, é o espectador que será logrado (e convidado a pagar caro para ver o que já está vendo, numa taxa de contraste maior), mais adiante serão os cultores desta farsa que terão que ajustar suas contas com as oportunidades que deixaram passar.
A mobilidade, por exemplo. Ela agrega mais espectadores novos do que os espectadores já existentes. São menos de 90 milhões de televisores fixos no país, contra 110 milhões de celulares, que são atualizados a cada 14 meses. Neles (e nos demais receptores portáteis), a TV pode ser vista a todo momento, de toda parte. O conceito de horário nobre simplesmente desaparece. Cresce quem estiver produzindo o que cada nicho quiser ver no lugar em que estiver. Se isso não muda o modelo de negócios, o que mudará?
Nada melhor que um fusquinha
As ferramentas interativas, também. Elas estão para ser definidas, e nem de longe se parecem com as opções de escolha que estão sendo demonstradas durante as ‘festividades’ de inauguração. Não retiram do espectador a possibilidade de assistir passivamente a uma narrativa, mas impõem, sim, a criação de narrativas multifacetadas. Por que não estamos trabalhando nisso? Porque estamos sendo induzidos a crer que são os modelos narrativos vigentes que buscarão em algum lugar do futuro opções interativas – e não que um modelo de formatação de conteúdo inteiramente novo é que poderá buscar inspiração nas formas dramatúrgicas existentes.
Avançamos bastante na construção de um bom padrão tecnológico para as transmissões digitais terrestres que agora se inauguram. A base japonesa é a melhor possível e, por enquanto, é impossível imaginar ferramentas interativas melhores que o Ginga, que foi inteiramente desenvolvido no Brasil, e que integrarão alguns dos conversores e receptores digitais que chegarão ao mercado. Mas o fato de a televisão digital começar para quase ninguém não representa apenas um dado estatístico. A televisão digital começa, de fato, sem que o usuário esteja informado sobre o que ela é. É arriscado afirmar que isso obedece a um planejamento doloso, mas se tal coisa acontece é um grande crime que se está perpetrando contra a sociedade brasileira – e muito especialmente contra o potencial da televisão como um meio.
Não há mesmo muito o que festejar esta semana. A celebração do domingo (2/12) foi amarga e tão pouco natural quanto uma farsa montada para uma novela. Há, no entanto, uma pequena estrada sendo aberta, que em pouco tempo integrará um sistema bem maior. Por esse caminho podem trafegar Ferraris, caminhões de grande porte, ônibus confortáveis, trens de alta velocidade. Por quanto tempo os vendedores de fusquinhas conseguirão induzir a sociedade a acreditar que isso é o máximo que tais estradas são capazes de comportar? Certamente, até o momento em que os motoristas dos velhos carrinhos se vejam sendo ultrapassados por todos esses meios.
Mais uma vez, eles lamentarão terem sido enganados. Ouvirão por mais uma década que nada na vida pode ser melhor que um fusquinha velho, como ouvem há décadas que nenhuma televisão no mundo é tão boa quanto a que se faz no Brasil. Serão reféns de dogmas como esses e da idéia de que olhar para o futuro é pecado – e não terão podido aproveitar em vida a bela estrada digital que teria sido aberta para eles.
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Jornalista