Saturday, 30 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Os infantes e o discurso ao avesso

O quadro apresentado por Regina Casé no Fantástico pode ser assistido com certa curiosidade ou como mais uma amenidade dentre outras do programa – mas no domingo 4/9 a série de entrevistas com crianças trazendo o ponto de vista delas sobre temas variados (no caso específico, sobre riqueza e pobreza) tornou-se reveladora da enorme cisão social do país.

Não que tamanha desigualdade seja novidade – o que torna relevante os comentários dos infantes é o discurso subjacente, verdadeira armadilha ideológica entranhada, fruto do senso comum, da ignorância e do conformismo cristão – rescaldo da dominação e miséria.

Se ‘miséria é miséria em qualquer canto’, mesmo a miséria pode ser desigual já que na favela onde todos são pobres (e ‘quase todos pretos’ senão ‘morenos’) existem alguns que são mais pobres que outros – os que são menos pobres dão-se por felizes como um dos meninos entrevistados. É possível então viver na favela, ser pobre e ser feliz? Sim. É possível.

Apesar de todas as mazelas e escândalos políticos, somos um povo feliz, lutador e trabalhador, ainda que tanto trabalho nem sempre resulte em prosperidade – daí o fracasso de cada um ser mais um dado pessoal, do indivíduo do que resultante do déficit educacional ou de oportunidades.

O antídoto

Os poucos que vencem (e não importa de que forma) passam a representar o paradigma a ser seguido, invejados e celebrados espetacularmente não pelo padrão moral ou ético e sim pelo que ostentam senão pelos estratagemas e fins empregados para alcançar o sucesso. E isso já está ideologicamente impregnado e disseminado na sociedade. Vê-se pelas respostas dos pequenos entrevistados de Casé.

A maioria de nossas crianças não pode (ou sabe) sequer sonhar em conhecer a Disney – tem preocupações mais prementes que vão além de sua parca infância – o que não nos dá o direito de negar-lhes uma vida mais justa, com mais oportunidades de educação, cultura, lazer, além da garantia de trabalho digno, bem como saúde e moradia.

Piores que as políticas públicas que não contemplam sequer o básico, são o conformismo ideológico, a conivência e o silêncio da sociedade. Silêncio banalizante que nos condena a todos a esse fosso social, de ignorância estúpida ou raivosa cisão de lados que se afirmam pela violência grotesca ou indiferença avassaladora.

O antídoto continua sendo a distribuição de renda com o máximo e urgente investimento maciço em educação contra o pensamento rasteiro, o senso comum e a ignorância mais tacanha – mas quem quer afinal combater esses males?

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Funcionário público, Jaú