Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os olhos já não podem ver

‘O problema era que você precisava ficar constantemente escolhendo entre uma opção horrível e outra pavorosa e, independente de sua escolha, eles cortavam mais um pedaço de sua carne, até que não restasse mais nada para descarnar. Por volta dos 25 anos, a maioria das pessoas estava liquidada. Uma maldita nação inteira de desgraçados dirigindo carros, comendo, tendo bebês, fazendo todas as coisas da pior maneira possível, como votar em candidatos à presidência que os fizessem lembrar de si mesmos.’ Misto Quente, Charles Bukowski (1920-1994)

Com os versos de Wave, no sábado (3/2) foi encerrada a exibição da novela Páginas da Vida da Rede Globo de Televisão. Mais do que o público e a propaganda que a emissora angariou com a novela, esta foi amplamente elogiada por ser mais ‘real’, por contar com relatos de pessoas comuns que vivem os dramas ali retratados. Literalmente inferior aos piores romances de folhetim, a novela não difere das outras de seu gênero e, como suas antepassadas, ‘resumiu’ a sociedade a alguns quadros pseudo-sociais, pornográficos e sensacionalistas.

Calcadas em valores unilaterais que traçam um retrato simplista de uma sociedade multifacetada e complexa, as narrativas novelísticas apresentam um recorte social que acaba por iludir quanto às questões sociais. Tornando-se um entretenimento subversivo e alienante que contribui para a construção de uma sociedade despolitizada e, conseqüentemente, transformando a população em uma massa de números para a publicidade.

Exaltação da monogamia

Mesmo quando almejam tratar de questões polêmicas visando a propor um ‘diálogo’ sobre o tema, as novelas e seus autores acabam por mostrar apenas o lado que condiz com os valores de uma narrativa maniqueísta que vá de acordo com a linha de pensamento da emissora, quando não, intercalam entre os temas o apelo ao jogo de violência e sexo visando ao aumento de audiência.

Sempre antenadas com os modismos pops, as novelas tratam dos temas de acordo com sua importância momentânea. Aborto, criminalidade, idosos, adolescência, corrupção, gravidez precoce, entre outros, são temas que, passado o viés ‘comercial’, deixam de figurar. Porém, este fato é até acalentador, visto que quanto mais o assunto é retratado nas novelas mais ele é distorcido e, por sua complexidade, ridicularizado.

Com sua linguagem simplista e a constante repetição de jargões de fácil assimilação, a narrativa das novelas segue técnicas diversas, desde aquelas relacionadas à escrita àquelas que dizem respeito ao áudio e vídeo, bem como à interpretação, edição e também a cerca de seis ou sete anos de pesquisas de campo, via institutos como o Ibope. Todo este conglomerado de técnicas, aproveitando-se da inserção e aceitação desse tipo de narrativa pela grande maioria da população brasileira, visa a persuadir o público de valores e normas unilaterais para que, adotando estes como verdadeiros, possam mais facilmente conduzir à adesão de produtos, mantendo a força política e cultural da população estagnada.

Disfarçadas de altruístas, as novelas traçam uma ética medíocre e despreocupada com o outro. Através, por exemplo, de tramas que envolvem triângulos amorosos, visam a demonstrar como a monogamia é a única forma correta de relacionamento, quando sabemos que esses valores só foram inseridos pela igreja católica muito tempo depois de várias atrocidades e orgias por ela mesma compactuadas.

‘Em qual mentira vou acreditar?’

Envolvendo personagens caracterizados como bons e maus, e traçando uma ‘batalha’ entre estes, incentivam à adesão a partidarismos que são extremamente prejudiciais à sociedade; afinal, a ‘batalha contra o mal’ dizimou milhões de ‘bruxas’ em tempos de outrora, assim como ‘ratos judeus’ e ‘baratas tutsis’ em tempos não tão remotos assim. Além disso, a adesão ao maniqueísmos culmina na transformação de uma sociedade propícia a rejeitar o diferente para ‘se proteger’ e, mantendo o ego elevado, através da condição adotada de ‘bom’, movimenta-se apenas com a finalidade de transformar a realidade a volta de si mesmo.

As novelas promovem um culto ao dinheiro através de seus figurinos e cenários, bem como de seus personagens e narrativas. Também retratam apenas uma classe social e, caso incorporem outras classes, sempre o contexto será visto a partir do ponto de vista das partes altas da pirâmide social. Governistas e propagadoras da política do pão e circo, não podemos esperar que se eximam da hipocrisia e da barbaridade que fortalece uma sociedade que despreza o próprio ser humano e suas particularidades e, com suas doses noturnas ou mesmo diárias de ópio, subvertam a inteligência do grande público calcando-lhes a esperança de viver uma vida digna de acordo com os valores por eles pré-estabelecidos.

Em vez de Tom Jobim, cabem aqui os versos do grupo Racionais Mc’s: ‘Em qual mentira vou acreditar…?’

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Coordenador de Comunicação, Jundiaí, SP