Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Os reality shows e o país das continhas – II

O brasileiro não sabe viver sem o sofrimento. Essa percepção já estava delineada nos idos de 1996, quando, para publicação acadêmica, ofereci o alongado ensaio ‘Política e cultura nos Trópicos: a questão da brasilidade entre a erosfobia e a tanatocracia’ (Cadernos Facha nº 4). Em síntese, na mencionada escrita, procurava observar a sintomatologia com a qual o comportamento majoritário do ser brasileiro melhor se identificava. Com as devidas reduções necessárias ao presente artigo, propunha, na ocasião, que a realidade brasileira se fazia marcar historicamente por concepções políticas que contemplavam o sentido da ‘morte’ (tanatocracia), bem como a reação majoritária da população desenvolvia uma prática inibidora do ‘gozo’ (erosfobia). Como ponto de equilíbrio, o imaginário societário tendia para a vivência de um estado assinalado pela ‘alegria desesperada’.

É sob inspiração daquela escrita que entrego ao leitor o desdobramento do artigo publicado na edição nº 422 deste Observatório, considerando que, em anos anteriores, no OI outros artigos publiquei a respeito do gênero reality show. Devo ressaltar também que comentários de leitores foram extremamente ricos em observações. É ótimo quando a relação autor e público se estabelece em bases tanto respeitosas quanto criticamente proveitosas. Todos lucram com a experiência, elevando o nível da comunicação interativa. Talvez, mais pelos comentários que propriamente por iniciativa autoral, exista o presente texto.

Sei bem que a técnica do texto jornalístico dita a seguinte norma: iniciar com o mais importante e, em seguida, os adornos. É bem verdade que não me atrai muito tal fórmula. Minha tendência se inclina sempre no ritmo crescente, a exemplo do Bolero, de Ravel. Desta feita, cedi ao primado do modelo oficial, inaugurando com a sentença ‘o brasileiro não sabe viver sem o sofrimento’. Este é o ponto a unir a frase à garantia do sucesso de alguns formatos culturais recorrentes na história brasileira, esquema do qual não se afasta o produto televisivo Big Brother.

Sofrimento real e compensação ilusória

Observemos que, na música, o samba, durante décadas, com seu ritmo envolvente, narrava desventuras, dores de amor. Antes dele, na literatura, o Romantismo, seja na poesia, seja na ficção, foi o estilo de época mais enraizador e de maior apelo entre os letrados. Voltando à música, já no âmbito da cultura de massa, quem fixou paradigmas não foi o Roberto Carlos dos primeiros acordes da Jovem Guarda e sim aquele que, com olhar triste, e canções de amor, principalmente marcadas pela desventura, amealhou multidões ao longo de inúmeras décadas.

Outra preferência nacional, a novela, não escapa do mesmo ingrediente: o sofrimento, tanto pelo acompanhamento diário, durante meses, quanto pelo fato de que a narrativa é permeada por constantes insucessos, fragilizações humanas, fracassos amorosos, intrigas e injustiças, a fim de, somente nos derradeiros capítulos, vir a compensação do ‘final feliz’.

No esporte, o futebol não difere: é necessária a vivência subjetiva de duradoura tensão e de intenso sofrimento até o breve momento de euforia pela recompensa do gol. Ainda assim, para o torcedor vitorioso. Ao perdedor, restará tão-somente o sofrimento. No campo da política, será diferente? Em que momento, efetivamente, a escolha majoritária terá demonstrado sintonia com algo diferente de uma experiência sofrida ou frustrada?

No tocante à ‘gramática’ que rege o enredo do Big Brother, que aspecto contém a alimentar o interesse do público que não seja também a perseguição do sofrimento? Como segmentação diária, o modelo reproduz a estratégia presente em qualquer novela. Quanto à roteirização, insere-se o dado diferencial que diz respeito à possibilidade de o receptor interferir na trama, à medida que seu telefonema colabora para a eliminação ou permanência desse ou daquele participante. O que isto representa para a ‘matriz do sofrimento’?

A pequena dose de sua contrapartida: a vingança, ou seja, o retorno do recalcado. O desfecho não difere do modo como se encerram as novelas: o vitorioso, com o referendo do público, sai da casa levando a soma de R$ 1 milhão, enquanto o público que, ao longo de meses, nada receberá, sem mencionar a legião que ainda pagou para ‘ver/ouvir’ tudo (?). Como consolo, o espectador tem a rara oportunidade de experimentar, numa vida que sempre está pronta para eliminá-lo, o prazer (vingança) de eliminar o ‘outro’. A Roma antiga ensinou esta lição nas arenas do Coliseu.

Saramago dixit

O leitor pode ser habitado por certa dúvida quanto ao que foi, em parágrafos anteriores, afirmado no campo, por exemplo, da música. O samba atual exalta a vida e seus prazeres. Na esfera romântica, não parece existir sucessor de Roberto Carlos. Sim, tudo isso é absolutamente verdadeiro. A modelagem da cultura de massa prevalente no Brasil de décadas recentes vai ao encontro da intensificação da ‘alegria desesperada’. Tudo deve ser ‘pra cima’, ou ‘vamos excitar a galera!’

O otimismo e a esperança se prestam como mote para a perpetuação do sofrimento adiado, em favor de atitudes anestésicas e tolerância máxima. Até tentei evitar, mas não consigo conter o ímpeto de encerrar o artigo com a declaração do escritor português José Saramago, quando, em entrevista publicada no Jornal do Brasil (‘Idéias’, 27/1/07), sentenciou:

‘Estamos afundados na merda do mundo e não se pode ser otimista. O otimista é estúpido ou milionário e não se importa com o que ocorre no mundo ao redor’.

Está certo: vamos dar pequeno desconto. Pode ser que Saramago tenha errado em 10% de sua afirmação. Assim, fica o desafio para sabermos como administrar os outros 90% de sua avaliação.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)