Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Palpites e generalizações

Assisti a uma parte do debate na TVE sobre a cobertura da violência no Rio (Observatório na TV de 7/12/04), e pensei fazer algumas observações. Em primeiro lugar, entendo que boa parte dessa questão reside no enorme interesse que a imprensa tem em provocar polêmicas a qualquer custo, não apenas pela desproporcionalidade dos destaques, mas também pelos enfoques distorcidos e pelos sofismas primários, produzidos para provocar opiniões emocionais.


A forma mais eficaz de inventar debates inúteis é criar objetos ou entidades virtuais, cuja existência esteja vinculada a uma particular visão do mundo.


Sou médico-psiquiatra e, em minhas aulas de Psicopatologia, todas as vezes em que surgem os debates sobre as relações causais entre a agressividade e os transtornos mentais, sempre menciono o fato de que não se conhece direito nem mesmo os mecanismos da agressão entre os invertebrados mais simples, sem nenhum sistema nervoso, como corais e anêmonas-do-mar!


Estereótipos em debate


Ninguém pode prever com exatidão quando um tubarão – que tem um cerebrozinho minúsculo – vai passar direto, fugir ou atacar. Nenhum cientista consegue explicar precisamente quando, como e por que um cão lambe uma pessoa e morde outra, ou ainda por que existem pit bulls mansos e poodles furibundos. Só no Manual Merck de Veterinária, um livro de referência geral, para consulta rápida, estão descritos 13 tipos diferentes de agressão de cães, a saber: agressão por dominância, por medo, por comida, por dor, idiopática, maternal, entre animais, possessiva, por brincadeira, predatória, protetora, redirigida e territorial. Ou seja, pensam os veterinários que para se estudar a agressividade do cão é preciso primeiro compreender o seu sentido.


Parece que muitos sociólogos, etologistas, psicanalistas, juristas e jornalistas não pensam, porque não se acanham de pontificar sobre temas como "a agressividade humana", passando por cima do sentido particular de cada fato ou evento. O que é evidente é que, mesmo que se reconhecessem os componentes instintivos da "agressividade", seria por demais ingênuo supor esta fosse um conceito homogêneo, definido e claro o suficiente para que se pudesse pesquisá-lo de forma direta e objetiva; o chamado "comportamento criminoso", então, com muitíssimo menos razão o seria.


Aqui no Brasil se alternam os debates entre os estereótipos da criminalidade social (causada pela pobreza, pela exclusão etc.) e o da falta de rigor da nossa lei, aliada à corrupção policial e judiciária. Nos Estados Unidos, onde o aparelho repressivo é reconhecidamente muito mais rigoroso, tende-se a encarar o crime como algo inerente ao indivíduo, o que não é incompreensível numa sociedade individualista e de formação basicamente calvinista (que tem como dogma a predestinação).


Discussões sem fim


Um psicólogo, J. Goldstein, pesquisou todos os artigos sobre violência e crime surgidos nos três principais jornais (The New York Times, Washington Post e Los Angeles Times) e nas três principais revistas (Time, Newsweek e US News) americanas durante três anos, concluindo que havia uma perspectiva mecanicista implícita em todos, tendendo a reforçar sempre a crença numa causa individual, biológica e previsível do comportamento violento.


Assim, teoricamente seria possível fazer um prévio screening desses indivíduos propensos à violência, desde a infância. Os próprios criminosos parecem acreditar nisso, ou pelo menos já estão argumentando perante a Justiça que seus crimes forma causados por um evidente defeito psicofisiológico incontrolável. Aqui, o tal defeito evidente parece ser de natureza socioeconômica.


Em suma, não existe nenhuma entidade definida chamada "Violência", mas sim diversas formas de atitudes e comportamentos agressivos cujas relações causais não são nada claras e que não poderão jamais ser discutidas em bloco. Há fatores genéricos e específicos que se imbricam de forma extremamente complexa. Para tentar compreendê-la, a natureza de cada situação precisaria ser analisada por quem conhece cada contexto específico, e não entregue a palpiteiros para generalizações que atendem ao interesse ideológico de cada um.


Em vez de ajudar a interpretar a questão, ouvindo quem possa ter idéias mais bem fundamentadas para o entendimento de cada aspecto do tema, a imprensa se contenta em avivar discussões sem fim, fomentadas por pessoas superficiais que têm interesses e posições fixas, repetindo como robôs as mesmas explicações paralelas e frases feitas.

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Médico-psiquiatra, mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ