Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Pânico na TV

Não, caro leitor, cara leitora, não estou falando daquele programa televisivo de qualidade duvidosa, tão ao gosto de muitos brasileiros. Nada contra quem assiste, mas diz muito sobre a indigência educacional do povo brasileiro e a qualidade da programação televisiva em nosso país. Quero falar aqui sobre o que desencadeou este clima de pânico nos meios de comunicação do Brasil a partir do surgimento dos primeiros casos da gripe A H1N1, ou gripe ‘suína’. Tudo leva a crer que o chamado ‘efeito de manada’, tão presente nas Bolsas de Valores de todo o mundo, tem seu equivalente nas redações de TV, rádio e jornais. E que faltam jornalistas dispostos a pensar e com coragem para remar na contracorrente.

Afinal, o que levou e ainda leva a mídia a fazer uma contabilidade mórbida diária sobre o número de pessoas infectadas e levadas a óbito se este vírus é responsável – até aqui – por apenas 0,5 morte por 100 mil habitantes? O índice pode variar um pouco, com o surgimento de novos casos, mas continua sendo ‘muito baixo’, nas palavras de gente idônea, como o infectologista David Uip, uma das principais autoridades médicas no assunto.

Claro, temeu-se pelo pior. Em 1918, foram 598 mortes a cada 100 mil infectados, já com o mesmo vírus H1N1. No total, 40 milhões de mortos. Em 1957 houve 40,6 mortes por 100 mil (4 milhões de óbitos) com o vírus H2N2. E em 1968, 16,9 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes (1 milhão de mortos) com a versão H3N2. O atual vírus A H1N1 é a quarta geração descendente do vírus de 1918. Para nossa sorte, até aqui – porque eles sempre estão em constante mutação – muito mais brando.

Por que o silêncio?

Desconfio que a maioria dos jornalistas nunca pesquisou quantas pessoas morrem, todos os anos, no Brasil, com as gripes ‘normais’. Cerca de 4 mil a 8 mil pessoas, geralmente idosos – é o que dizem as nossas nem sempre confiáveis estatísticas. Só descobriram agora que gripe mata?

Doenças como a Aids, tuberculose, malária e doença de Chagas, entre outras, matam mais de 12 milhões de pessoas todos os anos no planeta. São 32 mil mortes por dia! Por que a mídia não adota o mesmo comportamento em relação a outras doenças muito mais mortais e que atingem milhões de brasileiros, provocando milhares de mortes?

No Brasil, doenças já erradicadas em boa parte do mundo, como malária, tuberculose, hanseníase, dengue, diarreia e leishmaniose infectam e matam muito. São milhares de mortes, todos os anos, sem merecer não mais que algumas linhas na imprensa. Doenças que, mesmo quando não matam, provocam sequelas e incapacitam boa parte da população.

O Brasil registra, em média, 85 mil casos de tuberculose a cada ano, segundo o Ministério da Saúde. Isto representa 35% do total de casos nas Américas. Morrem de tuberculose cerca de 5 mil brasileiros por ano. Cadê a mídia? Por que silencia? (Estou sempre comparando com a ‘onipresença midiática’ com a gripe A.)

Políticas públicas impedem mortes

A malária, presente em mais de 100 países, ameaça 40% da população mundial. A cada ano, 500 milhões de pessoas são infectadas. No mundo, a malária mata uma criança a cada 30 segundos. Por que a omissão da mídia diante dessas doenças e suas mortes silenciosas?

Há várias razões, mas uma boa pista é que são doenças que acometem, principalmente, os mais pobres. Enquanto o vírus da gripe A se propaga ‘democraticamente’, causando – insisto – 0,5 morte por 100 mil habitantes no Brasil, somente as doenças infecciosas e parasitárias mataram 44,3 mil brasileiros em 2008, segundo a Sociedade Brasileira de Infectologia. Desse total, 2.757 eram crianças menores de um ano. Onde está a mídia que não aponta suas câmeras, seus flashes e seus textos para estes pobres moribundos?

Nos países mais pobres, a diarréia é a terceira causa mais comum de morte em crianças menores de cinco anos. No Brasil, foi responsável por 500 mil casos de internações hospitalares em 2008.

Mas, para não fazer a apologia do catastrofismo, tão ao gosto do jornalismo brasileiro atual, é importante dizer que houve uma notável queda das taxas de mortalidade infantil por diarreia, que caíram de 11,9 para 0,2 óbitos por 1.000 nascidos vivos, uma redução de 98,6% entre 1980 e 2000. Graças às campanhas de reidratação oral, que envolveram o Ministério da Saúde, a Sociedade Brasileira de Pediatria, a Pastoral da Criança, o Unicef e a Organização Pan-Americana de Saúde. O Programa de Saúde da Família, implantado pelo SUS em 1994, também tem contribuído para a prevenção e tratamento. Ou seja, com políticas públicas é possível impedir que muitos brasileiros morram de doenças perfeitamente evitáveis. E, neste caso, os meios de comunicação também ajudaram muito.

Interesses sempre estão em jogo

Mas então, por que este clima de pânico na TV com a gripe A, depois que ela se revelou menos mortal? A irresponsabilidade da mídia, sob o pretexto de bem informar, provocou uma corrida desnecessária aos hospitais, transformando as emergências num caos. Seria pedir demais aos jornalistas um mínimo de reflexão? Que tal indagar, para começar, por que estamos tão preocupados com a gripe A se outras doenças matam muito mais? Bem, talvez seja melhor nem fornecer essa pista aos repórteres, ou darão plantão permanente nas UTIs.

Doenças matam e continuarão a matar milhões de pessoas em todo o planeta. Às vezes, de forma avassaladora, até que se encontre a cura. Não há o que fazer, além de tentar prevenir e exigir das autoridades uma política de saúde pública que garanta o máximo de qualidade de vida à população.

À mídia, aos jornalistas, só para, quem sabe, mudar um pouco de assunto, sugiro uma boa pauta: investigar por que as doenças que atingem apenas 10% da população mundial recebem 90% dos investimentos – públicos e privados – para estudos e pesquisas científicas?

Jornalismo de qualidade, sobre saúde, começa por aí. De olho em muitos interesses que sempre estão em jogo. Sem negligência para com os fatos, mas também sem pânico.

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Jornalista, Florianópolis, SC