Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Para que serve o aparelho de TV

Existe uma conspiração tecnológica internacional a favor da diversidade do conteúdo, mas há sérias dúvidas que ela esteja sendo convenientemente entendida no Brasil. A demora dessa compreensão pode retardar a implantação de plataformas emergentes e as vendas de aparelhos de TV digital.

É um problema sério, mas ainda assim residual. A má notícia de verdade é que isso aponta no sentido de mais uma vez nos colocar na retaguarda da produção de conteúdo e de suas aplicações. Se tal coisa acontecer, ficaremos de novo na dependência do conteúdo estrangeiro e dando as costas à produção de um conteúdo original que poderia gerar divisas, autonomia cultural e auto-estima para o país.

Um exemplo: o caderno ‘Informática etc’ do Globo de segunda-feira (2/8) traz a segunda matéria do repórter André Machado sobre a evolução dos celulares na Coréia e no Japão. No texto, que ocupa duas páginas, a palavra ‘telefone’ aparece apenas uma vez. Em compensação, fala-se incessantemente em transmissão de imagens, áudio e de toda sorte de downloads de jogos e serviços. Está bem claro que telefonia passou a ser uma aplicação secundária na nova geração de celulares – aparelhos que, segundo a matéria, chegam a ser vendidos no Japão pelo equivalente a 0,03 reais.

A julgar por esse valor, não é da venda do hardware que a indústria está vivendo. O nome do jogo é tráfego de conteúdo. Isso já está acontecendo na telefonia móvel. Vai começar a acontecer nas plataformas digitais de televisão.

Dias contados

A discussão interminável em torno do padrão digital a ser adotado no Brasil começa a beirar as raias do ridículo. Há duas semanas, 45 milhões de reais do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel) foram destinados a pesquisas em televisão digital, inclusive em padrões próprios de transmissão.

Por meio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), agência de fomento do Ministério da Ciência e Tecnologia, estão sendo liberados recursos para a) o desenvolvimento do subsistema de modulação do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), b) desenvolvimento de codificador e decodificador do vídeo escalável MPEG-2, c) definição de um padrão de referência para o middleware do SBTVD, d) estabelecimento de modelo de referência e interfaces para o desenvolvimento de uma arquitetura aberta para o receptor de TV digital, e) desenvolvimento de um serviço que contribuirá para a especificação das funcionalidades que o terminal do middleware de acesso deve prover para a oferta de serviços interativos de informações, solicitação de benefícios e outras funcionalidades no campo dos serviços de saúde, f) e o desenvolvimento de estudos, especificações e protótipos de aplicações interativas para a TV digital compatíveis com os padrões de middleware dos sistemas comerciais existentes – e com o middleware de referência proposto para o SBTVD.

Tudo isso é bom, mas o fato é que sequer 1 centavo foi aplicado no desenvolvimento de formatos e conteúdo, que é um dos pólos onde deveriam estar concentradas as preocupações do Estado brasileiro. No próprio seminário sobre TV digital promovido semana passada pela Rede Globo, que vive da produção e difusão do conteúdo, a questão do conteúdo especificamente concebido para aplicações de TV digital não chegou a ocupar um lugar compatível com a consistência das discussões.

A grande luta que se trava na assimilação das novas tecnologias está na compreensão das mudanças de paradigmas no comportamento do consumidor. Ele não está mais preocupado, como há um par de anos, se a recepção do seu telefone móvel é boa, até porque já quase não existe recepção ruim. Da mesma forma, o espectador não espera do seu aparelho de TV mais versões do conteúdo que ele já tem, justamente porque na maioria dos casos a repetição dos formatos já lhe é excessiva.

Não só dos formatos como das soluções. E os exemplos de multiplicam. A bola da vez é a percepção pelas emissoras abertas que os programas policialescos do horário de acesso não funcionam, nem em audiência nem em faturamento. Já não funcionavam há muito tempo, mas todas descobriram isso simultaneamente. A Record acabou com o seu Cidade Alerta, as demais devem fazer o mesmo com os similares. Estão tirando os programas do ar da mesma forma como os colocaram: enfileirados um após o outro.

Falta de criatividade, medo de experimentar e acomodação aos modelos existentes são incompatíveis com a emergência das plataformas digitais de transmissão de televisão. Tal como aconteceu com os aparelhos celulares, as novas tecnologias criam aplicações diferentes para os equipamentos e mudam os hábitos dos seus consumidores. Mudam também, e principalmente, a tolerância ao imobilismo das veiculadoras de conteúdo. A televisão imitativa está com seus dias contados. E recepção de programas, tal como entendemos hoje, torna-se uma competência apenas residual dos aparelhos.

Coragem de inventar

Perdemos feio a batalha da TV por assinatura, que se travou a partir da segunda metade dos anos 1980. Dezenas de grandes redes internacionais foram criadas nos EUA e na Europa. Nenhuma no Brasil. Não logramos criar nem mesmo uma rede de televisão por assinatura que estivesse presente hegemonicamente na América Latina. Para falar a verdade, não fomos capazes de colocar redes regionais do norte em operadoras do sul do país, nem redes regionais do sul em operadoras do norte. Mas pelos lineups das operadoras brasileiras circulam mais de 200 redes de televisão estrangeiras.

Em muitas dessas redes, os produtores brasileiros imploram por pequenos espaços e parcerias que sabem ser leoninas. É uma situação grotesca e humilhante. O Estado brasileiro criou condições, através do artigo 39 da MP 22.281, para que as programadoras estrangeiras aplicassem 3% do imposto devido na co-produção de conteúdo brasileiro. Nem assim se conseguiu uma adesão decente. As programadoras burlam ostensivamente a lei, seja estabelecendo contratos milionários que fogem completamente aos padrões orçamentários da televisão, seja deixando que seu dinheiro fique depositado numa conta que deveria se destinar à co-produção, mas fazendo com que na prática nenhum projeto seja escolhido.

Neste momento, existem cerca de 6 milhões de reais do artigo 39 indo para o ralo, porque as programadoras estrangeiras acham que nenhum brasileiro é bom o suficiente para merecer fazer parte de sua programação. Se fossem 6 reais em pão jogado no lixo, o padeiro poderia ser preso – e ele não estaria colocando em risco a integridade cultural do país.

Entre a arrogância das programadoras que jogam fora o dinheiro do contribuinte brasileiro, proíbem que o brasileiro se veja nas telas e impõem padrões estéticos tão banais e vulgares que não passariam por qualquer avaliador com QI acima de zero, o produtor brasileiro de conteúdo para TV não é apenas um estranho no seu próprio mercado – é um estranho indesejado por yuppies de espantosa cultura televisiva, que de Miami para toda a América Latina estão promovendo uma televisão de grande qualidade…

Quando divorciamos os estudos de sistemas e padrões tecnológicos da pesquisa de conteúdo, o que estamos fazendo de verdade é abrir caminho para que esta situação se perpetue na era digital. Quando entendermos para o que serve um receptor de televisão – como começamos a entender para que está servindo um telefone celular –, teremos perdido o tempo que precisávamos para tirar proveito das tecnologias emergentes. E, no entanto, o mundo digital está sinalizando alto e forte que a televisão não é mais aquilo que outrora podia ser feito de forma imitativa, ao abrigo seguro da criatividade e da coragem de inventar. Temos que escolher se queremos lutar por nossa própria cultura e nossa própria dignidade, ou abrir espaço para mais algumas décadas de servilismo econômico e indignidade cultural.