Paulo Patarra (74 anos, nascido 21/10/1933) acaba de ir embora fisicamente, mas ele já havia se despedido há algum tempo, ferido por doenças e por um esquecimento injustificado. Quero ficar com a melhor imagem dele, jovial, saltitante peso leve em seus 45 quilos e não mais que 1 metro e 60 de altura. Pequeno, magro, ágil, ligeiro nos movimentos e rápido como um raio no pensamento. Um líder de sorriso acolhedor, que não intimidava ao liderar, sempre abrindo espaço para todas as opiniões, paternal com os mais jovens.
Comunista sem verdades absolutas, mas fiel à estratégia de conquistar espaços para os interesses das pessoas do povo. Tático de movimentos habilidosos e fulminantes, capaz de mirar objetivos aparentemente inalcançáveis, e consegui-los. Fumante de tempo integral, daqueles que têm os dedos marcados pela nicotina. Pai de três filhos lindos, que conheci bem pequenos no apartamento de Vila Buarque, ao lado da sua ex-mulher Judith.
Em 1960 eu era um foca no Estado de S.Paulo e fui fazer um cursinho na Escola de Sociologia e Política, para tentar o vestibular de Ciências Sociais na USP. Paulo era um dos professores. Não lembro o que ele ensinava, nem o que aprendi. Sei que logo fui convidado à sua casa, onde conheci a família. Ficou a amizade.
Seu trabalho principal era no jornal Última Hora, de Samuel Wainer, jornal popular, à esquerda dos jornalões das classes dominantes e que apoiava o governo de João Goulart. Era chefe de uma seção que chamavam copyright, uma central de coordenação e edição que despachava matérias para as edições regionais do UH.
Golpe de mestre
Perdemos contato, mas soube que ele fora trabalhar em Quatro Rodas, nova revista da Editora Abril. Em 1964, me chamou. Disse que tinha grandes planos, a Editora Abril ia lançar uma revista de reportagens e queria montar uma equipe forte para poder pleitear a direção da revista. Era o projeto de Realidade, naquele momento pouco mais que um sonho. Fui contratado para ser repórter de Quatro Rodas. Pela redação já estavam Sérgio de Souza, José Hamilton Ribeiro e logo chegariam outros.
Patarra participava das reuniões da direção da empresa em que se discutia o novo projeto. Seria uma revista semanal a sair aos domingos, encartada no Estadão e no Jornal do Brasil, do Rio. Enquanto discutia lá por cima, ele quis dar um sinal da competência de sua equipe. Mandou-me fazer uma reportagem sobre os índios de todo o Brasil, um grande balanço que envolveu quase três meses de viagem pela Amazônia e outras regiões. E saiu no lugar do caderno de turismo de Quatro Rodas, uma denúncia da trágica situação das tribos indígenas numa revista de automóvel!
Paulo foi ousado, mas agradou a direção da empresa. E foi atraindo mais profissionais, como Luis Fernando Mercadante, Narciso Kalili, José Carlos Marão e outros, que vieram em seguida, como Woile Guimarães, Mylton Severiano, Hamilton Almeida Filho (Haf), Luigi Manprim, Eduardo Barreto, Otoniel Pereira, Roberto Freire – e certamente estou esquecendo muita gente, que me desculpem.
O projeto em conjunto com os dois jornais fracassou. E a Abril decidiu sair com uma revista própria, mensal, nas bancas. Quem iria dirigir o projeto? A disputa estava dura entre Paulo e Luis Carta, que já era diretor da revista Claudia, muito simpático ao empresário Victor Civita. Paulo percebeu que o patrão confiava mais em Luis Carta que nele, que era tido como esquerdista e tinha idéias consideradas muito ousadas para fazer a revista.
A decisão foi deixada por ‘sêo’ Victor para ser tomada numa reunião entre Paulo, Luis Carta e seu filho, Roberto Civita. Foi um almoço no Automóvel Clube. Depois de muita conversa de despiste, Paulo deu um golpe magistral. Em determinado momento, disse: ‘Só uma pessoa está em condições de dirigir essa revista!’ Luis Carta ficou na expectativa. Ou Paulo apoiava seu nome, e tudo bem, ou indicava-se a si mesmo, e ele e Roberto certamente iam ser contrários. Paulo disse: ‘É o Roberto!’. Roberto ficou vermelho como um pimentão, lisonjeado, e porque estava louco para ter um papel de protagonismo. E Luis Carta não teve como não concordar, era o filho do dono!
Honra e dignidade
Golpe de mestre, de samurai! Roberto foi o diretor da revista Realidade e Paulo Patarra o chefe de redação. Não faltava dinheiro. Paulo levou toda a equipe que planejara montar, desenvolveu sua linha editorial de grandes reportagens de temas de atualidade. Levou as histórias do povo para dentro do jornalismo, priorizou os assuntos mais candentes na área de costumes, destacou a mulher, a liberdade sexual, o feminismo, o divórcio (que ainda era proibido no país), o comportamento da juventude, a música popular quando surgiam Roberto Carlos e Chico Buarque.
Já que vivíamos sob uma ditadura militar, Patarra buscou tratar de forma indireta os assuntos políticos. Era um mestre na arte de ir testando os limites da censura, de avançar e recuar conforme a tensão. Realidade foi o maior sucesso editorial da imprensa escrita do nosso jornalismo, teve as maiores tiragens e ficou para a História como a melhor revista de todos os tempos no país.
Paulo Patarra, arquiteto de revistas, condutor de equipes, teve ainda outros sucessos, como a criação do projeto de Vejinha, que sai encartada na revista Veja. Também protagonizou projetos na televisão, deu aulas em escolas de jornalismo. Mas sua obra máxima foi Realidade. E só por isso ele já está entre os grandes na História do jornalismo brasileiro. Exemplo para as novas gerações, para todos aqueles que quiserem fazer jornalismo com honra e dignidade, a favor do progresso da sociedade.
Claro que morreu pobre. Mas ainda tinha alguma coisa para nos dar: doou seu corpo para a Ciência.
Leia também
‘Jornalista tem que saber ler‘ – Gil Campos entrevista Paulo Patarra
Ele desafiou a vida e o jornalismo – José Carlos Marão
******
Jornalista