Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Pedra do Reino, um erro no rótulo

Na semana retrasada, a Rede Globo de Televisão exibiu a primeira parte de seu projeto ‘Quadrante’: a microssérie A Pedra do Reino, baseada na obra do paraibano Ariano Suassuna. Nas palavras do próprio diretor responsável, Luís Fernando Carvalho, o seu objetivo é ‘reencontrar e contar o meu país’. Por isso, quatro ficções brasileiras, uma de cada região, serão transformadas em produto televisual. Além dessa primeira, as outras serão Capitu, baseada no livro de Machado de Assis, Dois Irmãos, da obra de Milton Hatoun, e Dançar Tango em Porto Alegre, de Faraco.

A Globo, desta maneira, tenta inovar – ou experimentar – no formato televisivo. Cenários belíssimos, direção de arte impecável, atores regionais desconhecidos do grande público, iluminação arrojada, interpretação não-realista e uma narrativa não-linear. A microssérie, entretanto, não obteve a audiência esperada pela emissora (a média ficou em torno de 11%, contra os 15% previstos). Foi o pior índice de audiência para um programa de dramaturgia exibido nesse horário na última década, segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo do dia 19/06. De acordo com uma enquete promovida pelo portal UOL, 34,84% dos telespectadores afirmaram terem tentado assistir ao primeiro episódio, mas acharam ‘tudo muito chato e complicado’ e acabaram desistindo.

O emissor e o público

Vale recordar que é do mesmo autor um outro produto, sucesso de público: Hoje é Dia de Maria. Entretanto, esse último, embora em um formato diferente, trabalhou com uma linearidade narrativa, característica dos produtos das televisões comerciais abertas brasileiras.

A Globo não errou em experimentar. Muito pelo contrário. Tampouco em investir em um programa com baixas expectativas de audiências e excelência em qualidade audiovisual. A relação comunicacional entre emissor e receptor, neste caso, não se concretizou por um erro na classificação, na etiquetagem do produto.

Charaudeau, um analista do discurso, afirma que ‘todo ato de comunicação depende de um contrato’. Ou seja, não dá para falar em prática comunicativa sem que haja, previamente, um pacto prévio entre emissor e receptor. Ao classificar um programa como ficção, por exemplo, a emissora revela a sua intenção ao emissor que deve, então, comprar a idéia e os pressupostos de um gênero ficcional para somente então compreendê-lo. O gênero, a classificação de um produto, gera um vínculo entre o emissor e seu público.

O gênero é uma promessa

O francês François Jost, um dos maiores especialistas em mídia no mundo e professor da Sorbonne Nouvelle, vai além da idéia da idéia do contrato bilateral e co-assinado e defende que a televisão funciona na base da promessa. Para ele, naquilo que é próprio da TV – a busca pela grande audiência –, é impossível que se configure a relação contratual baseada em um pré-acordo de pressupostos comuns e razões compartilhadas entre emissor e receptores.

No meio de tantos telespectadores, é concebível pensar que nem todos compartilhem os mesmos pressupostos que não são imanentes do produto. Para ele, o sentido de um determinado produto televisual não se encontra somente no texto e nas imagens, mas também no seu peritexto, nas margens, naquilo que é dito anteriormente sobre ele, nos conhecimentos laterais. Qualquer especialista em marketing da indústria de cinema hollywoodiana sabe que o filme começa a ser assistido muito antes de sua exibição efetiva.

Ao etiquetar um produto sob o rótulo de um determinado gênero, o emissor cria uma interface com o receptor. O gênero, segundo Jost, é em si uma promessa constitutiva. Se o produto é etiquetado como uma comédia, por exemplo, o receptor espera que irá rir e baseado nisso ele irá julgar o produto.

Menos troca de canal

Entretanto, para o autor, a classificação de um produto televisual nem sempre corresponde ao conteúdo exibido e depende muito mais de fatores econômicos, comerciais, financeiros e estratégicos da emissora. Para atrair o espectador, a emissora atribui ao produto o rótulo que ela acredita que irá atrair mais audiência. Fala antecipadamente do programa; comenta a seu respeito; exibe trailers; promete. A promessa pressupõe um receptor ativo e a ele cabe verificar se ela foi cumprida ou não. Pela promessa que foi feita é que ele irá julgar a qualidade do programa. Bom ou ruim.

Talvez a Globo tenha errado ao apresentar a Pedra do Reino como mais um produto de sua imensa teledramaturgia. O espectador da Rede Globo há muito tempo está familiarizado com a linguagem da emissora e sabe muito bem a que ela se refere quando rotula ‘teledramaturgia’. São produtos lineares com uma série de conflitos baseados na estrutura clássica da narrativa. Tivesse a Globo etiquetado o produto como uma inovação, ou experimentação de linguagem, talvez tivesse uma audiência ainda menor, mas, com certeza, seria uma audiência mais preparada para o estabelecimento da relação comunicacional com a obra. A promessa – o rótulo – teria sido mais próxima do conteúdo do produto. A decepção seria menor. Haveria menos troca de canal.

Dúvida ética

A Globo, neste caso, não está preocupada com a baixa audiência. Não esperava algo muito diferente desses 11% atingidos. Preocupa-se com o controle remoto. Com esse novo e incômodo hábito do telespectador, frente à nova concorrência, de mudar de canal. A emissora já foi soberana. Seu público era fiel. Não dá para brincar com essa perspectiva. Sendo sincera na promessa, ela teria evitado alguns mal-entendidos.

PS: Na grande dúvida ética sobre autoria de textos e idéias, fico na agradável obrigação de mencionar o professor, jornalista e mestrando em comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais, Alexandre Campello, que estuda, dentre outros tantos autores, François Jost, na busca de inspiração para escrever os capítulos de sua dissertação e com quem conversei longamente sobre o assunto deste artigo.

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Estudante do último período de jornalismo pela Universidade Fumec, Belo Horizonte MG