Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Pedro do Coutto

‘Paixão de Cristo, de Mel Gibson, é um filme imperdível, extremamente forte pelas cenas de tortura e por retratar a histórica hipocrisia dos fariseus e a violenta e abominável ocupação militar da Judéia por Roma. Nada tem contra os judeus de forma indiscriminada, muito menos contra o judaísmo. Nem poderia, inclusive historicamente. Exalta Jesus Cristo, alguém que nasceu judeu e morreu judeu. No desfecho da cruz, ele deixou para sempre sua mensagem humanista. A qual não se realizou, pois a ganância, a falsidade, o egoísmo, a ingratidão, o roubo, a violência continuam há dois mil anos depois dele. Ele é a maior figura da humanidade e da história universal, divisor do tempo para todos os tempos.

A CNBB e os Evangélicos apoiam a obra. Claro. Gibson segue o Novo Testamento (cristão), conjunto de livros que se opõe ao Velho Testamento Judaico. Um aspecto fica evidente: se fosse para concordar com Moisés (1100 anos antes de Cristo), o cristianismo seria desnecessário. Querer culpar os judeus pelo desfecho de Jerusalém é o mesmo que culpar todos os alemães pelo holocausto promovido por Hitler. Evidentemente, a execução de Jesus Cristo foi romana, caso contrário não teria sido crucificado e sim morto por apedrejamento. Mas o plebiscito que a antecedeu foi judaico. Pois teve lugar na Judéia ocupada por Roma. Por isso, havia dois governadores: Pôncio Pilatos, nomeado pelo imperador Tibério, e Herodes Agripa, judeu porém escolhido pelos romanos. Tibério tentava, com a indicação de Herodes, contornar a questão religiosa.

Cristo morreu porque se opôs às duas forças: a de ocupação e a de adesão, esta representada pelos fariseus. Milhares de judeus seguiam Cristo, tornando-o o maior dissidente da história universal.

Ao contrário do que muitos pensam, a Bíblia não é um livro, tampouco são dois. São 74: 47 judaicos, 27 cristãos. Os 47 formam o antigo Testamento. Os 27 compõem o Novo, a parte cristã. Ora, se o Novo Testamento foi escrito é porque seus autores não concordavam com o Antigo. Via internet, focalizo o conflito e o confronto, ao publicar meu livro eletrônico Cristo, o maior dissidente da História. Quem ler, como se lê um jornal, os evangelhos de Mateus ( o mais denso), Marcos, Lucas e João, vai constatar a cerrada carga de ataques contra os fariseus. Por isso, os cristãos apóiam e os judeus, por equívoco, rejeitam a obra. Mas a divergência entre judeus e cristãos é nítida e essencial: os judeus não aceitam que Cristo seja filho de Deus, recusando igualmente a ressureição. Isso porque sustentam que Deus jamais assumirá a forma humana. Divino de nascimento ou não,foi divinizado através dos séculos. Os judeus, como um todo, não devem assumir a culpa por um episódio que tem dois mil anos. Como os portugueses não são culpados pela morte de Tiradentes. Em síntese: os que vivem no presente não tem culpa pelo aconteceu no passado.’



Moacyr Góes e André Leonardo Chevitarese

‘Visões de um conservador’, copyright Jornal do Brasil, 26/03/04

‘Por que o ódio? A versão d’A Paixão de Cristo de Mel Gibson é apenas um filme. Um filme frágil, diante da história que ele tinha nas mãos e das imensas possibilidades de leitura desse episódio que marca definitivamente a vida do Ocidente. O filme, no entanto, despertou tanto incômodo que alguns críticos chegaram a questionar a liberdade de Gibson de criar sua versão da Paixão e colocá-la no mercado. Infelizmente essa insensatez é recorrente entre nós. A debilidade do filme é fruto do seu roteiro. A ação é construída com tamanha precariedade que, em muitas seqüências, restou apenas a opção infeliz da imagem em câmera lenta, como se isso pudesse substituir o desenvolvimento do drama.

A insistência por esse recurso e o alongamento das cenas de tortura esvazia o conteúdo dramatúrgico e remete o espectador a um desconforto oriundo não das causas que produziram aquele fato, mas apenas do horror de uma violência descomunal. Mas não é a violência imposta ao corpo de Cristo o problema, e sim sua frágil construção dramatúrgica.

Mas é preciso que se diga algo a favor do filme de Gibson, pois ele tem qualidades. Se não inteiramente realizadas cenicamente, são leituras interessantes. Para os cristãos, Jesus foi um Deus que se fez homem e viveu entre nós. Foi criado na barriga de uma mulher e sofreu em seu corpo de homem a experiência do paradoxo de ser divino e precariamente humano. Jesus construiu em seu corpo o palco onde os homens puderam representar o que são. E esse corpo virou um campo de batalhas, arruinado, pisoteado, cuspido e crucificado. A imagem desse judeu vilipendiado e pregado na cruz é a tradução dos caminhos da intolerância, venha de quem vier, de quantos vierem. Isso está no filme e um filme é uma leitura.

A maior parte dos artigos e resenhas acerca do filme de Mel Gibson procura desqualificá-lo, voltando suas atenções para a acusação de anti-semitismo. Tal ênfase nos parece completamente fora de lugar. Ela talvez se explique como sendo o resultado de um grande desconhecimento dos dados históricos que estão por detrás das narrativas evangélicas, estas sim por demais conhecidas.

No filme, Gibson em momento algum retira Jesus e seus discípulos de dentro do judaísmo. Não apenas eles não estão fora, como não são apresentados como cristãos. Essa é uma categoria que irá se constituir depois da morte de Cristo. O que fica evidente é que a querela ocorre no seio do judaísmo, e temos como exemplo a divisão retratada no Sinédrio acerca do julgamento de Jesus.

Sob o ponto de vista histórico, alguns dados podem ser apontados, sejam pelas suas virtudes, sejam pelos seus defeitos. Começando por estes últimos, há alguns equívocos históricos, como por exemplo, Pilatos ser apresentado como um bom governante, acuado pelo sumo sacerdote Caifás e alguns outros elementos do Sinédrio. Isso não tem base histórica. A ênfase poderia ser dada na aliança, esta sim histórica, entre parte das elites locais em todas as províncias (incluindo aí a própria Judéia) e as autoridades romanas ali instaladas. Aí está uma das bases de sustentação do próprio império romano.

Quanto às virtudes, o filme de Mel Gibson oferece algumas interessantes leituras. A primeira: um Jesus visionário no monte das Oliveiras e a sua prisão durante a noite, sugerindo, neste último caso, de maneira acertada, que ele gozava de uma certa popularidade em Jerusalém. Segunda: as acusações que são apresentadas contra Jesus no Sinédrio também foram bem apontadas por Gibson, principalmente àquelas relacionadas ao fato de Jesus ser um mago e de expulsar demônios porque ele mesmo tem um demônio dentro de si. As atuais pesquisas demonstram que tais acusações remeteriam ao Jesus da História, não o da fé. Terceira: a presença de etíopes em Jerusalém. Este é um elemento importante, já que muitas vezes, a julgar pela forma como são pensados os currículos dos cursos de História em muitas universidades deste país, o negro somente apareça na História na condição de escravo e, assim mesmo, só a partir do século XVI. É como se antes deste período, ele nem mesmo existisse!

Mas é evidente que a abordagem fundamental do diretor não é histórica. Mel Gibson constrói seu filme no terreno religioso, na luta teológica entre Deus e Satã, com a vitória do primeiro após a ressurreição de Jesus. Este é o cerne, é o fio condutor de toda a narrativa apresentada por Gibson. Quem sabe isso ajude a explicar o porque do diretor enfatizar tanto os aspectos do flagelo e da crucificação de Jesus. Eles teriam sido orquestrados por Satanás, interessado em derrotar a obra de Deus. Assim, cada varada, cada açoite, cada soco e demais atos de violência brutal desferidos contra Jesus são capturados pela lente de Gibson para marcar a imensa doação que Jesus faz em prol da humanidade. Essa é a crença de Gibson. Talvez ele tenha sido mais crente e menos competente como criador. Devemos crucificá-lo por isso? Insultá-lo pelo uso do marketing? Desqualificá-lo porque é um conservador? Diretor teatral e cineasta, realizador de ‘Maria – Mãe do filho de Deus’; historiador, professor da UFRJ’



Jornal do Brasil

‘Filme em questão’, copyright Jornal do Brasil, 26/03/04

‘Não existe estratégia de marketing capaz de se equiparar aos efeitos de uma polêmica. Sobretudo uma polêmica religiosa. Foi essa a lição que Hollywood recebeu de A Paixão de Cristo (The Passion of the Christ, EUA/ Itália, 2004). Depois de ter gerado a ira de autoridades religiosas judaicas pela suspeita de ser anti-semita, alcançou uma bilheteria de US$ 295 milhões em apenas três semanas em cartaz nas telas americanas. No Brasil, o filme, dirigido por Mel Gibson, um ator de blockbusters e cineasta premiado (ganhou o Oscar por Coração valente, de 1995), católico ultra-conservador, também fez uma receita pra lá de divina: teve um público de 673.596 pessoas por aqui. Um fenômeno inegável. O que aumentou ainda mais a ira dos detratores do longa-metragem.

Concebido com a proposta de ser um retrato absolutamente fiel das doze últimas horas de Jesus Cristo, desde o início da produção A Paixão de Cristo gerou uma discussão acalorada, furiosa até, poucas vezes vista na indústria cinematográfica internacional. Ao mencionar que queria rodar a fita, baseado em um roteiro em latim e aramaico, com a violência que fosse necessária para retratar com todas as tintas o calvário do filho do Homem, Gibson fez com os produtores, literalmente, vissem o projeto como o Diabo encara a cruz. O cineasta resolveu bancar o longa com recursos próprios. Gastou US$ 30 milhões para bancar filmagem e finalização. O resultado tem sido bem recebido pelo público. Mas a perspectiva ética do filme permanece em debate.’



SOB A NÉVOA DA GUERRA
Gustavo Leitão

‘O Rolando Lero dos EUA’, copyright Jornal do Brasil, 26/03/04

‘O controverso Robert McNamara é dos personagens mais interessantes da História americana. Enquanto foi secretário de Defesa dos Estados Unidos, durante a presidência de Kennedy e Johnson, o país atravessou alguns dos mais dramáticos confrontos da Guerra Fria, como a guerra do Vietnã e a crise dos mísseis de Cuba. Várias perguntas se acumulavam desde então. O documentário Sob a névoa da guerra, supunha-se, viria para responder algumas delas. Mas responde a poucas.

Por um simples motivo. O filme de Errol Morris, ganhador do Oscar de documentário, se concentra nas visões de McNamara – e só dele – sobre esses episódios. Aos 85 anos, o ex-secretário de Defesa mostra ter uma memória prodigiosa para os fatos. E inteligência suficiente para fugir das saias justas. Fica equilibrado entre um pacifismo sentimentalóide e o belicismo que sempre norteou sua carreira política. O principal senão da produção é este. Organizado em 11 lições, parece apenas um panfleto de McNamara contra seus opositores, uma aula de política que nem sempre convence. Como, mesmo com tantas baixas, a guerra do Vietnã foi prolongada por tantos anos? Enrola-se, enrola-se e o espectador não fica sabendo. O maior mérito do diretor foi ter desenvolvido um sistema que permite que ele e personagem fiquem cara-a-cara durante as entrevistas. Isso faz com que o entrevistado não desvie por um instante os olhos da câmera. Tudo isso resulta um belo retrato de uma personalidade cativante. Daí a uma lição de História…’