Novo reality show culinário da Band, ‘Pesadelo na Cozinha’ traz boa diversão ao misturar a gastronomia, os dramas humanos e uma espécie de pedagogia sobre o funcionamento ideal do mundo dos negócios.
Os reality shows culinários são uma tendência televisiva de sucesso inegável. Basta ver a repercussão, dentro e fora das telas, de programas como MasterChef Brasil (Band), Hell’s Kitchen Brasil e Bake Off Brasil (SBT). É uma febre que conquistou espaço no Brasil com certo atraso – uma vez que há anos programas semelhantes abundam nos canais de TV a cabo.
Uma das razões para o sucesso destas atrações é o fato de que elas estão perfeitamente adequadas a certos movimentos que ganham força socialmente, como a busca por uma vida mais “natural”, mais consciente e avessa à velocidade atropelada das cidades urbanizadas (não à toa, fala-se muito hoje de uma tal slow food). Não por acaso, também, um programa que ainda gera uma certa polêmica é o Bela Cozinha, de Bela Gil, justamente por levar esta visão ao extremo.
A tendência dos programas culinários parece ainda encontrar fôlego na TV, e é na carona desta moda que a Band estreou Pesadelo na Cozinha, uma versão nacional da franquia Kitchen’s Nightmare, protagonizada pelo chef britânico Gordon Ramsay. Trata-se, basicamente, de um reality cujo mote é o oferecimento de uma espécie de consultoria feita pelo famoso cozinheiro a algum restaurante falido, na tentativa de salvar o negócio. O formato híbrido do programa mistura elementos da psicologia, da administração, do design e decoração e, claro, da gastronomia.
No Brasil, Pesadelo na Cozinha chega no intuito de aproveitar o carisma de um dos jurados de MasterChef Brasil, o francês Erick Jacquin, agora separado dos parceiros de programa, a argentina Paola Carosella e o brasileiro Henrique Fogaça. Nesta primeira atração, como em todo bom reality show, Jacquin conquistou o público por configurar um personagem bem delineado: trata-se um chef estrangeiro, de um dos países de maior destaque na área da gastronomia (o que traz ares de importância à sua reputação), duro em suas análises dos pratos (é comum que diga na cara dos participantes que sua criação é “muito ruim” ou “horrível”), mas terno em momentos estratégicos (tornando-o, assim, uma espécie de ogro simpático, capaz de educar mas também de confortar nas horas necessárias).
Os ingredientes de “Pesadelo na Cozinha”
Essas características são trazidas para Pesadelo na Cozinha, mas se trata, de fato, de um programa muito diferente. Se em MasterChef Brasil a comida assume importância central, em Pesadelo na Cozinha, ela é apenas um dos vários elementos do cardápio. A cada episódio, Jacquin é “convidado” para ajudar a salvar um restaurante que está indo para o buraco por razões variadas – pela desorganização, pela inexperiência de gestão do gerente, pelas crises de relacionamento entre casais que dividem o negócio, pela má qualidade da comida, pelas dívidas que não param de crescer. Tal como um guru em todas essas áreas, Jacquin surge para salvar os desesperados.
Como reality show, funciona muito bem e consegue prender o espectador até o fim. E quais os “ingredientes” que tornam esta mais uma fórmula de sucesso? Primeiramente, há o que se poderia chamar de “fator humano” da atração. Como todo bom reality, a matéria prima é o que emerge das relações humanas, especialmente quando entram em situações de crise (lembre, por exemplo, que Big Brother Brasil sem embates entre os participantes parece ter nenhuma graça). Os dramas, inclusive, extrapolam muito a esfera dos negócios. Em um dos restaurantes, uma situação trazida a todo instante pela proprietária é que o fracasso do estabelecimento a impede de realizar o sonho de ter um filho.
Se em “MasterChef Brasil” a comida assume importância central, em “Pesadelo na Cozinha”, ela é apenas um dos vários elementos do cardápio. “Pesadelo na Cozinha” meio que hipnotiza o espectador à tela justamente pela promessa de ver, sob claras luzes, o que acontece nos bastidores do restaurante, este lugar simbólico do qual, convenientemente, só conhecemos o que acontece em certas áreas. A graça aqui é, justamente, a de ver a sujeira (literal e metaforicamente). Já dizia um ditado que só come salsicha quem não sabe como ela é feita – e a ideia é mais ou menos a de escancarar a forma que os estabelecimentos gastronômicos funcionam, de fato. Mas, à diferença de MasterChef Brasil, aqui os participantes são exibidos sobretudo nesta protegida área de bastidores, e expõem às câmeras da Band suas discordâncias daquilo que o chef Jacquin coloca a eles como o caminho para o sucesso. Por isso, uma das partes mais divertidas é exatamente ouvir as reclamações alheias daqueles que não concordam ou desrespeitam o mestre pelas costas.
Há ainda o elemento pedagógico corporativo, como já comentamos sobre MasterChef Brasil, que é algo que se repete aqui: o programa carrega uma visão sobre como é o funcionamento ideal do mercado de trabalho, marcado pela obediência, pela normatividade e pela separação entre vida pessoal e profissional. Praticamente todos os restaurantes trazidos ao programa estão afundando em razão desta confusão: o dono que ficou amigo dos funcionários e não consegue mais exercer a autoridade necessária, o casal que iniciou um negócio e agora lava a roupa suja no ambiente de trabalho. Portanto, há um fator de aprendizado coletivo, típico desses reality shows corporativos, que é bastante atraente ao público.
Por fim, há um ingrediente menos óbvio que se concretiza na própria figura de Jacquin, que aqui se apresenta de forma diferente do que em MasterChef Brasil. Em Pesadelo na Cozinha ele está mais direto ou, talvez, mais agressivo – fala bem mais palavrões, não mede palavras na hora de dar broncas nos participantes, as quais costumam ser mal recebidas por eles. Há, de alguma forma, um embate entre culturas, uma vez que Jacquin personifica aqui mais elementos da cultura europeia, baseada na franqueza e na falta de papas na língua, o que causa forte estranhamento com o cordial brasileiro, mais acostumado às etiquetas sociais, ao menos no que diz respeito à esfera da linguagem. Ou seja, para nós, Jacquin será sempre considerado grosseiro, enquanto, em sua própria visão, este talvez seja o único caminho a garantir uma verdadeira melhora nos negócios.
Com apenas 3 episódios, Pesadelo na Cozinha traz pistas de ser mais um formato explorado com sucesso pela Band, que tem se destacado como emissora que investe com inteligência em diferentes estilos de programas que outrora ficavam restritos à TV a cabo.
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Maura Martins é jornalista, pesquisadora e uma das editoras do blog Escotilha