Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Pisar na ética (em nome da ética) dá ibope

A ética está na moda. Em qualquer discussão, do verdureiro ao presidente da república, do estudante ao catedrático, a questão mais debatida é se alguém agiu de forma ética ou aética. Se existe obediência à ética ou se alguém atenta contra a ética. Ética virou moeda corrente, palavrinha fácil, corriqueira, presente em qualquer roda de botequim, qualquer tribuna parlamentar, qualquer plenário da ONU, qualquer reunião – ministerial ou de pauta. Ainda bem – viva! – que a ética está se popularizando, dirão alguns, lamentando que a discussão sobre o tema tenha demorado tanto. Outros acatam a colocação do tema na pauta diária como sinal da chegada de um novo tempo – salve!, – um tempo regido pela ética. Mas sempre haverá alguns, recalcitrantes – devagar com o andor… –, os que ficam com um pé atrás, como eu, desconfiados dos que vivem a brandir argumentos éticos para justificar atos visivelmente antiéticos.

Pois em nome da ética tem sido cometida boa parte dos deslizes, irregularidades ou crimes de imprensa, sobretudo os mais rumorosos. Vamos rapidamente a alguns. A pretexto de denunciar ações de pedofilia num colégio paulista, isto é, em nome de princípios éticos, a imprensa criou os horrores do caso Escola Base, jogando a vida profissional e pessoal de seus proprietários na sarjeta. Em nome da ética, a imprensa contribuiu para destruir a reputação profissional e ajudou até a desfazer a família do ex-ministro Alceni Guerra, no governo Collor, acusado (e plenamente inocentado) de superfaturamento na compra de bicicletas para o Ministério da Saúde. Nos anos 80, o atual deputado Ibrahim Abi-Ackel pagou caro pela denúncia (em nome da defesa de princípios éticos) de envolvimento em contrabando de pedras preciosas quando ocupava o Ministério da Justiça.

Em nome da ética, entre lágrimas e com ar profundamente compungido, o apresentador Gugu Liberato tentou se desculpar no programa de Hebe Camargo por ter levado ao ar entrevistas falsas com ameaças a apresentadores de televisão lembrando, a seu favor, que não se investigava se era ou não verídica a voz atribuída a Saddam Hussein quando eram veiculados os conteúdos das fitas atribuídas ao ex-ditador… Na seqüência, em nome dos princípios éticos que condenam a censura prévia, procurou-se a todo custo contestar a atitude da juíza que mandou suspender a veiculação do programa de Liberato no SBT.

Outro apresentador, o Ratinho, outro dia apelou para a ética a fim de justificar a exposição em seu programa das cenas de uma menina de 3 anos sendo torturada. Alegou que estava denunciando um crime, ou seja, atuava em favor da prevalência de princípios éticos mesmo que para isso tivesse que expor publicamente a degradação de uma criança.

O último ato desta ópera bufa e trágica foi protagonizado há poucos dias pelo apresentador Clodovil Hernandez, no programa A casa é sua, da Rede TV. Ao vivo, o Sr. Clodovil desancou a prefeita Marta Suplicy, chamando-a de ‘idiota’, ‘inútil’, ‘desocupada’ e ‘perua que teve sorte na vida’. Tudo a pretexto de agir conforme preceitua a ética, em defesa do cantor Agnaldo Timóteo, proibido pela fiscalização da prefeitura paulista de vender seus CDs no centro da cidade por não ter, como todos os outros que exercem o mesmo ofício, o respectivo registro de ambulante. E atacou: ‘Agnaldo Timóteo tem que vender disco na rua. Ele vai fazer o quê? Ele vai fazer o que todo crioulo faz no Brasil? Vai virar ladrão, bandido ou o quê? (…) ‘Botar um cantor na rua, passar por um vexame, enquanto ela (Marta) está sentada numa sala refrigerada, a inútil, a desocupada’ (…) Hoje vou passar a tarde inteira falando de madame Suplicy, que até o nome ela fisgou do outro’.

Tal como os ‘justiceiros’ que infestam a televisão brandindo preceitos éticos para alimentar seu sensacionalismo de porta de cadeia, o Sr. Clodovil, que se pretende professor de moral e de filosofia existencial em sua trajetória de apresentador de televisão, tropeçou exatamente na falta de ética que desejava acusar na atitude da prefeita e ex-colega (trabalharam juntos na TV Mulher, da Rede Globo, na década de 70). Dona Marta, que não sabia da proibição a Agnaldo Timóteo, sequer recebeu um convite para comparecer ao programa e apresentar sua versão, a versão da prefeitura. O apresentador Clodovil Hernandez, que poderia ganhar um belo processo baseado na Lei Afonso Arinos (‘vai fazer o que todo crioulo faz no Brasil? Vai virar ladrão, bandido ou o quê?’) ainda invadiu a vida pessoal da prefeita, ao acusá-la de manter o sobrenome Suplicy, fato de foro íntimo que diz respeito exclusivamente a ela e ao ex-marido.

Menos de 24 horas depois da diatribe, o Sr. Clodovil, mais manso, foi à televisão pedir desculpas à prefeita. Se aceitá-las, Marta Suplicy estará prestando enorme desserviço ao aperfeiçoamento ético da televisão brasileira, pois deixará passar bela oportunidade de obrigar um desses ‘justiceiros’ a não atacar a honra pessoal e profissional das pessoas. Porém, se não aceitar as desculpas do Sr. Clodovil e decidir levar adiante o processo civil e criminal, estará ajudando a fazer escola ao punir pelo menos um entre os muitos que se servem da ética para desmoralizar um princípio basilar da convivência humana: a própria ética. Ao mesmo tempo, abrindo o processo, a prefeita estará contribuindo para evitar o uso da mídia como suporte ao egocentrismo, além de dar um sinal bem claro aos que se servem de xiliques de estrelismo para alavancar o ibope.

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Jornalista, pesquisador, professor da UnB, documentarista, autor de A noite das reformas, O salto sem trapézio, Vermelho, um pessoal garantido, Caprichoso: a Terra é azul e Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês. Este artigo é parte do projeto acadêmico Telejornalismo em Close (http://caid.sites.uol.com.br), coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para (paulojosecunha@uol.com.br)