Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Polícia é polícia, mãe é mãe e jornalista é jornalista

15/9/2005 – ‘Nenhuma pessoa deve se fazer passar por alguém que não é – isso se chama falsidade ideológica. Por que seria diferente então com um jornalista? Ao se recorrer deliberadamente à mentira, minam-se os fundamentos de uma atividade empenhada em perseguir a verdade. Mesmo tendo em vista altos propósitos, flexibilizar uma conduta básica abre espaço para toda sorte de transgressão e pode levar ao descontrole ético. Nem o chamado disfarce passivo (‘só digo quem sou se me perguntarem’) – outro malabarismo ético – é tolerado na Cultura: enquanto trabalha, o jornalista deve sempre deixar clara sua identidade’ (Jornalismo Público – Guia de Princípios – TV Cultura, SP, 2003).

Lúcio Flávio, o passageiro da agonia, o filme dirigido por Hector Babenco e protagonizado por Reginaldo Faria, narra os últimos momentos do marginal carioca Lúcio Flávio, que antes de morrer revela a um repórter os nomes das pessoas que o envolveram e o tornaram um dos bandidos mais populares do Rio de Janeiro. Uma frase dita por Lúcio Flávio ficou famosa: ‘Polícia é polícia, bandido é bandido’. Parafraseando Lúcio Flávio, é possível afirmar que ‘Polícia é polícia, jornalista é jornalista’. Mas essa distinção não funcionou no episódio da prisão de Flávio Maluf, filho do ex-governador Paulo Maluf, em São Paulo. O repórter César Tralli, da Rede Globo, segundo matéria da Folha de S. Paulo, ‘estava vestido de policial federal’, quando Flávio Maluf desembarcou do helicóptero particular no heliporto do Morumbi, onde a PF facilitou a realização de imagens do preso algemado.

À parte a condenável espetacularização dos atos da PF, explicadas pelos agentes policiais com o argumento de que ‘é a norma’, é injustificável que um repórter concorde em se vestir de policial para realizar seu trabalho. Igualmente injustificável é que a PF permita que um repórter se passe por um de seus agentes para obter informações. O veterano Joel Silveira, quando foi destacado por Chateaubriand para cobrir a ação dos pracinhas na Segunda Guerra para as Associados, não só teve de trajar a farda de coronel como recebeu e portou a patente até retornar ao Brasil. Hoje, nem mesmo os ‘embbededs’ ingleses e norte-americanos que foram cobrir a invasão do Iraque acompanhando as tropas tiveram que vestir farda. Portanto, das três, nenhuma:

1) se Tralli envergou a indumentária por livre e espontânea vontade, errou. Deveria continuar a ser o excelente repórter que sempre foi, e assim se apresentar;

2) se foi obrigado a se vestir de policial federal como condição para ingressar no heliporto, deveria ter recusado e caído fora do local. Matéria alguma justifica que um repórter abra mão da própria identidade. Bye, bye, furo e um abraço;

3) se a TV Globo sabia e aprovou que seu repórter envergasse um traje de policial para conseguir uma matéria, errou também, pois não tem o direito de submeter um profissional a qualquer procedimento aético.

Circula na internet informação não confirmada segundo a qual Tralli teria amigo ou parente na Polícia Federal, o qual teria facilitado sua presença no local onde ocorreria a colocação das algemas em Flávio Maluf. Nem assim se justificaria a presença de Tralli trajando calça bege, boné preto, colete e óculos escuros, tentando se confundir com policial federal. Pior: pelo que noticiaram os jornais e pelo que se depreende da matéria veiculada no Jornal Nacional, efetivamente houve a facilitação para que Tralli, agindo como videorrepórter, filmasse a colocação das algemas.

Um constrangido e surpreso Flávio Maluf ainda balbuciou algumas palavras de espanto, pela presença da câmera e do câmera. Segundo o Blog do Noblat, ‘Flávio foi filmado recebendo o par de algemas. Entrou no carro. A porta do lado dele ficou aberta o tempo suficiente para que a filmagem continuasse. Ao chegar ao prédio da Polícia Federal, foi filmado assinando o termo de prisão. E novamente filmado chorando ao telefone em conversa com a mulher’. Tudo isso feito por um videorrepórter fingindo ser um policial federal. Nada contra a prisão de Flávio Maluf e do pai dele. Deviam ter sido presos há mais tempo. Sempre lembrando que prender é uma coisa, constranger é outra. Não foi a toa que o advogado de Flávio Maluf ingressou com interpelação à PF pelo constrangimento imposto a seu cliente.

Por último, de volta ao começo, vale a pena rever a lição do marginal Lúcio Flávio: ‘Polícia é polícia, bandido é bandido’. Assim como mãe é mãe e jornalista é jornalista.

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Jornalista, editor do Telejornalismo em Close