A telenovela brasileira não vive da ficção, mas da realidade. Seu sucesso depende de sua capacidade de sintetizar um pacto de convivência imaginária do telespectador com suas aflições cotidianas. Você pode dizer que a literatura, o cinema ou o teatro propõem pactos semelhantes, mas há uma diferença crucial: a temporalidade desses pactos não se confina ao presente imperioso. O lastro de verdade de um grande romance não evoca o noticiário da semana passada; o lastro de verdade da telenovela inscreve-se no imediato. Vem daí a sensação de que as novelas, depois de exibidas, envelhecem aceleradamente, até virarem fósseis da indústria cultural. Seu brilho é tão intenso quanto passageiro – a sua arte é o efêmero.
O retumbante fenômeno televisivo da temporada, Os Dez Mandamentos, cujo capítulo final foi ao ar na segunda-feira pela Rede Record, não foi exceção. Nessa novela um tanto outsider, o Moisés mítico não entrou em cena como personagem antigo, descolado do nosso tempo, mas como um líder político para o presente. Sua força dramática é uma força do presente. Seu milagre não foi abrir as águas do Mar Vermelho, mas ultrapassar a Globo em algumas curvas da corrida do Ibope, e isso tem tudo que ver com o agora.
A maior parte dos comentadores não entendeu esse recado. O que quase todos repetem (e repetem, e repetem, e repetem) é que o êxito de Os Dez Mandamentos se deve ao enredo quase inocente, sem baixarias do mundo-cão, sem tiroteio e sem anabolizantes eróticos. Repetem e erram. O trunfo da mais nova campeã de audiência não está na pureza de intenções de seus personagens planos, nem nos cenários fake com ares de reserva ecológica do moralismo primitivo, nem nos efeitos especiais defasados, que davam um ar de inocência tecnológica ao enredo bíblico. O que arrebatou a plateia não foi uma proposta de fuga da realidade, como tanta gente supõe, mas o oposto: onde a crítica especializada viu escapismo, a Record levou a público uma conclamação de engajamento e de mobilização social.
A novela Os Dez Mandamentos celebrou a fusão definitiva entre fé e política, entre igreja e Estado, por meio da qual prometeu vencer o vício e a corrupção. Ela deu certo não por ter sido uma quimera pinçada aleatoriamente do Velho Testamento, mas por ter sabido estetizar (ainda que de modo rudimentar) uma plataforma conservadora que encontra eco profundo na sociedade. O telespectador que se deixou embevecer encontrou seu pacto instantâneo de convivência imaginária com as suas aflições cotidianas – sobretudo as aflições de fundo político.
Se você ainda duvida, olhe um pouco em volta da TV. Atentemos para dois aspectos disso a que damos o nome de “realidade” (apenas dois aspectos bastarão).
O primeiro é a cristalização de um escândalo institucional que seria impensável em qualquer democracia madura: a convergência entre partidos políticos, igrejas e redes de rádio e televisão, numa triangulação promíscua que atenta frontalmente contra os princípios do Estado laico. Lembremos que a radiodifusão é definida na Constituição federal como “serviço público” e, como tal, jamais poderia ser conduzida segundo diretrizes religiosas. Quando se desmancham os limites institucionais que deveriam separar partidos políticos, igrejas e a radiodifusão, algo está muito, mas muito fora de lugar.
O segundo aspecto que temos o dever de anotar é de natureza litúrgica, ou mesmo carismática. De uns tempos para cá, uma dessas agremiações religiosas que reluzem na televisão passou a adotar em suas celebrações paramentos e iconografias típicas do judaísmo, invocando para si uma tradição que remete à Torá. Uma réplica do que teria sido o Templo de Salomão foi construída na cidade de São Paulo, numa forma ritualística um tanto paródica, uma espiritualidade “disneyca”, no adjetivo criado por Paul Virilio. O mesmo efeito estético é perceptível em Os Dez Mandamentos da Record, que por vezes pareceu uma chanchada tardia do filme homônimo de Cecil B. DeMille.
À luz do desarranjo institucional da radiodifusão brasileira e da operação mística de proporções perfeitamente industriais que açambarca a cena política, não é difícil de constatar que vem recrudescendo um modelo, por assim dizer, “tele-eclesiástico” de organização política das massas. Para muitos dos agentes desse novo modelo de estetização da política, que se imaginam seguidores de Moisés ao pé da letra, a separação entre igreja e Estado é uma concessão ao pecado. Esses agentes têm milhões de seguidores, resolutos e fervorosos. Nesse caldo de cultura, a novela Os Dez Mandamentos vem para ordenar a paixão popular.
Num ensaio escrito 1991, o crítico americano Harold Bloom descreveu o tele-evangelista Billy Graham como “o papa da América protestante”. Bloom não via o pregador pop como ameaça: “Ele não faz quase nenhum mal e quase nenhum bem; é praticamente desprovido de sentido religioso”. Graham seria apenas um “enterteiner sem nenhuma originalidade” (An American Religion, Simon & Schuster, 1992, pág. 75).
Os herdeiros de Graham no Brasil também não primam pela originalidade. Só são um pouquinho mais ambiciosos. Querem o poder, e estão quase lá. Dizem inspirar-se no profeta hebreu que tinha canal direto com o Deus único, libertou seu povo do Egito e lançou a ira divina sobre o culto das imagens. Sem se dar conta, caem em contradições clamorosas. Dedicam-se ao culto da televisão, esse bezerro de ouro inventado no século 20 que ainda opera milagres no século 21. Puseram a profana imagem eletrônica a serviço do figurino do Velho Testamento.
É bem verdade que em matéria de imagens a Igreja Católica foi a primeira mídia de massa, como sinalizou Régis Debray. Mas o espetáculo pirotécnico de sincretismo evangélico que está vindo por aí (e por aqui) vai deixar no chinelo a velha idolatria apostólica romana. Basta olhar e ver a realidade da novela.
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Eugênio Bucci é jornalista e professsor da ECA-USP