A reunião que o Ministério da Cultura promoveu no dia 8/7 com a imprensa e alguns realizadores de cinema serviu oficialmente para apresentar o conjunto de editais de produção que vão injetar cerca de R$ 15 milhões na produção de quase 200 títulos, entre longas, curtas e pequenas realizações digitais. Extra-oficialmente, o encontro foi também o holofote para que o MinC voltasse a informar que o governo pretende publicar em agosto o projeto de transformação da Ancine em Ancinav.
Trata-se da transformação da agência reguladora de cinema em agência reguladora de toda a atividade audiovisual, incluindo aí a televisão. Isso é o que estava previsto na medida provisória de 2001 que criou a agência e que foi reescrita menos de 48 horas antes de sua publicação, para excluir a televisão, cedendo às pressões do setor.
Paradigmas e perplexidade
O quadro hoje é muito diferente, por três razões principais. A primeira é que aumentaram muito as divergências entre as grandes redes de televisão aberta (Globo de um lado, as demais de outro); a segunda é que a atuação do Ministério da Cultura no atual governo acabou sendo muito mais ampla e agressiva do que se poderia imaginar, sobretudo por quem acompanhou de perto o perfil do ministério nos oito anos do governo anterior; a terceira é que o universo da atividade audiovisual expandiu-se exponencialmente neste curto período, com a materialização de muitas formas de convergência tecnológica, das quais a construção de conteúdo original – ou adaptação de conteúdo de TV – para telefonia móvel é apenas uma delas.
O ministério de Gilberto Gil ganhou um pouco da cara do ministro, principalmente em ousadia e irreverência. Como Gil, a pasta ficou capaz de envergar um terno completo sobre um visual reggae – e a atitude fazer sentido. Gil insistiu em ter a Ancine sob o teto de seu ministério, quando a vinculação da agência ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio já era questão decidida e constante até da MP que a criou. Insistiu nisso até quando quase toda a classe cinematográfica havia se posicionado de outra maneira, inclusive em seminários promovidos pelo próprio PT para orientar a sua política cultural. Poucos meses depois, a adesão à sua posição já era maciça.
Isso não quer dizer que os realizadores audiovisuais estejam hoje mais unidos do que já estiveram. Há divergências sobre questões maiores – como os critérios de patrocínio das estatais ou a reforma das leis de incentivo – e também sobre assuntos pontuais – como as posições da Ancine em relação à cota de tela. Tanto os realizadores quanto as emissoras de TV, no entanto, tem uma coisa em comum: a perplexidade diante dos novos paradigmas de produção e difusão do audiovisual.
Música para os empresários
Historicamente, produtores desconhecem o que se passa dentro das emissoras de TV e as emissoras de TV não entendem o que se passa dentro da cabeça dos produtores. Esse desconforto tem sido potencializado à nova tecnologia que aparece – e novas tecnologias não param de aparecer. Hoje, produtores de conteúdo entram nas operadoras de telefonia móvel como se estivessem caminhando sobre a superfície de Saturno – e nem poderia ser diferente. A conceituação tanto de produtores como de difusores de conteúdo se amplia no mínimo a cada nova edição dos suplementos de informática. Há como regular ou pelo menos estabelecer, para usar uma linguagem adequada, protocolos comuns de comunicação entre todas essas partes?
Sabe-se pelo menos que a grande quantidade de questões novas que estão surgindo é capaz de reposicionar, mas não de eliminar, as questões antigas. Problemas como o gargalo na distribuição do produto cinematográfico, por exemplo, ou os modelos de produção para cinema, não podem ser descartados pela simples chegada de novas formas de expressão audiovisual. A Ancine está concentrando energias no trabalho de fiscalização das salas de exibição. Poderia parecer jurássico, mas é essencial para que o modelo de exibição possa se desenvolver e a indústria existir. Do outro lado, há indícios positivos de que o ministério de Gil esteja acompanhando a dinâmica da evolução da atividade audiovisual. Sua preocupação com a nacionalização do conteúdo para telefonia móvel, por exemplo, é um sintoma de antenamento com o que se passa ao seu redor. Isso, no entanto, é apenas o início. No dia 30 do mês passado, o noticiário eletrônico Tela Viva News publicou uma boa reportagem de Samuel Possebon sobre o que o jornalista chamou de ‘divisão hippie’ do MinC, na verdade a área de cultura digital, um pequeno grupo que trabalha no entendimento e aplicação de novas tecnologias digitais e também na ponte com outras áreas do governo, como o Instituto de Tecnologia da Informação (ITI), de onde nasce a formulação de políticas afetas, como a do software livre.
A entrada de capital estrangeiro na Editora Abril, anunciada na semana passada, é música para os ouvidos dos empresários de comunicação, em especial de comunicação eletrônica, que tem que investir alto para se reciclar tecnologicamente às vésperas do início da corrida para a digitalização das plataformas de transmissão. A simples formatação de um conteúdo mais diversificado e mais caro, que é a primeira conseqüência da tecnologia a ser implantada, já seria suficiente para justificar uma sofisticada política para o setor e de um intrincado estudo para regulá-lo, que não passa apenas por uma agência capaz de regular as atividades ligadas à produção e difusão de cinema e televisão, mas dos novos paradigmas de radiodifusão e telecomunicações em todo o mundo.
No vácuo do gap
O Brasil, como geralmente acontece, é uma presa fácil de suas contradições. Quinto maior parque de telefonia móvel do mundo, não chegou a assistir à montagem de um parque adequado de telefonia fixa. Muitas das questões debatidas agora – reserva de mercado, afunilamento da distribuição, monolitismo dos modelos de produção, participação da TV na produção de cinema – são na verdade do tempo do telefone de bateria. Mas o fato é que elas não foram resolvidas e é justamente o debate em torno delas que mantém viva a atividade audiovisual.
Tornou-se cada vez mais comum ouvir-se nas reuniões de produtores audiovisuais: ‘Ouço falar disso há mais de 30 anos’. A pergunta é: por que tantas questões não foram resolvidas até agora? A resposta mais possível é: porque a cada momento uma parte não entendia o universo da outra.
Nunca o universo audiovisual foi tão complexo e se desenvolveu com tamanha rapidez. Não vai ser fácil regulamentá-lo e tirar proveito de todas as oportunidades que a era digital pode oferecer se não houver uma grande tentativa de entendimento dos novos mecanismos de produção e distribuição do produto audiovisual e dos paradigmas definidos pelas tecnologias que vão surgindo. Não apenas a montagem da Ancinav, mas o recrudescimento da discussão essencial sobre velhos temas, indicam que a atividade audiovisual tem que aprender sobre que audiovisual está falando, para não ficar perdida no vácuo do gap tecnológico.
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Jornalista