Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Quem tem direito de andar à paisana?

O Fantástico dos últimos domingos vem apresentando Profissão: Repórter, uma série de reportagens realizadas por jornalistas de primeira viagem orientados por Caco Barcellos. A idéia é que os meninos se embrenhem em rincões remotos do Brasil com uma câmera escondida e que consigam trabalho. No último programa eles cortaram cana, por duas horas, e a quantidade que conseguiram juntar não valia nem um real.


Mais importante do que registrar seu desempenho no extrativismo era flagrar o esquema de contratação ilegal, da falta de equipamentos de segurança, de privilégios e preconceitos, entre outros delitos óbvios para qualquer trabalhador do campo, que causam estranhamento aos jovens repórteres e a muitos telespectadores.


A reportagem termina nos estúdios da Globo, numa ilha de edição. Caco Barcellos conduz uma reflexão. Pergunta aos jovens por que deram a reportagem por encerrada duas horas depois de cortar cana. Eles estavam claramente exauridos. Porém, a menina alegou também que na emoção de já haverem conseguido chegar até ali, empregarem-se, gravarem tudo o que gravaram, tiveram a sensação de missão cumprida. Queriam levar o material embora dali, e fim.


Vêem-se esquemas de corrupção flagrados por repórteres à paisana desde sempre, ou pelo menos desde que eu me entendo por gente. Mas, às vezes, questiono se isto é certo ou errado. Do mesmo modo, como pode uma gravação de telefone grampeado servir como prova, se grampo é ilegal?


Quando João Salles acolheu Marcinho VP para gravar Notícias de uma guerra particular, a opinião pública caiu matando. Os fins não justificavam os meios. Ou onde já se viu acobertar um bandido procurado pela polícia, só para gravar um documentário? O mesmo Marcinho VP é protagonista de Abusado, livro de Caco Barcelos. Aliás, Caco é um dos pioneiros nessa literatura dita marginal. Antes de Dráuzio Varella e Paulo Lins transformarem em best-sellers suas experiências, Caco já havia publicado Rota 66, sobre as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, uma unidade da polícia paulista. O lançamento, se não me engano, foi na Praça Villaboim, no bairro de Higienópolis, em São Paulo. Os coronéis estavam na espreita, olhando de longe, com cara de quem não leu e não gostou. Depois disso, Caco foi trabalhar nos Estados Unidos. Tim Lopes não teve tempo de escapar. Descoberto com câmera escondida na favela, foi morto e virou mártir. Sofreu uma daquelas ‘derrotas ínfimas perto de tantas outras conquistas tão maiores’, como definiu a viúva e mãe dos dois filhos (um com 2 anos, outro de 7 meses) do alpinista Vitor Negrete, primeiro brasileiro a atingir o cume do Everest sem oxigênio. Ele morreu na semana passada, no caminho de volta. Ambos tiveram vitórias impressionantes, mas as derrotas foram pagas com suas vidas.


Mais jornalista


Tim Lopes foi um jornalista ímpar, cuja contribuição no combate ao crime organizado no Rio de Janeiro é merecedora de menções honrosas e prêmios. Existe até o Prêmio Tim Lopes de Jornalismo Investigativo. Mas e os meios? Justificam qualquer reportagem? Descobrir e escancarar o crime ajuda a combatê-lo. Mas fazer-se passar por outra pessoa não vem a ser, se não me falha a constituição, falsidade ideológica, crime previsto em lei? E a questão da autorização do uso da imagem, dor de cabeça de todo assistente de produção? Ou o estado de direito não vale para infratores?


Mas o que me intriga é a seguinte questão: qual aprendizagem extrai um jovem jornalista quando a escola o ensina a investigar fingindo ter outra identidade, outra procedência e outra intenção, conseguir imagens e depoimentos incríveis e depois exibir tudo no Fantástico? Aliás, ainda bem que havia o Fantástico e a equipe de produção da Globo por trás de tudo isso, porque senão é mais provável que a empreitada tivesse um fim triste. É o tipo de reportagem que deveria vir com um aviso: crianças, não tentem fazer isso longe de casa!


Ás vezes eu penso que foi mais jornalista o que não conseguiu a matéria. O que deu com a cara na porta, mas com a câmera na mão. O que falou a verdade na primeira pergunta que respondeu, acreditando que assim a recíproca teria mais chances de ser verdadeira.

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Jornalista, São Paulo