‘Os negros no Brasil e nos Estados unidos são projetados todos os dias pela mídia de seis modos mortais. Somos projetados como menos inteligentes do que somos, menos trabalhadores do que somos, menos patriotas do que somos, menos universais do que somos, menos dignos do que somos e mais violentos do que somos.’ (Jesse Jackson, em conferência no Senado Federal, em Brasília, em 1996)
Como pode um país como o Brasil, no qual a maioria da população é negra, permitir que uma rede de televisão coloque no ar uma novela com o título Da cor do pecado? Não sabia que ser negro é pecado. Sempre admirei as pessoas que têm orgulho de sua cor. Nesta novela exibida pela Globo, a emissora de televisão de maior audiência em nosso país, a ‘vilãzinha’ (Giovanna Antonelli) pode chamar a ‘mocinha’ (Thaís Araújo) o tempo todo de ‘neguinha’? Isso sem falar no tal Afonso (vivido por Lima Duarte), que não promove seu secretário, Felipe, simplesmente por ele ser negro. Pode?
Um telespectador mais atento não consegue deixar de notar o quanto a televisão brasileira tem sido bem-sucedida na tarefa de destruição da auto-estima dos milhões de negros que vivem aqui. A cada telenovela, a cada telejornal, a cada comercial lá está o ideal de branqueamento que a elite dominante sempre sonhou para o Brasil. Não é à toa que os poucos homens negros bem-sucedidos casam sempre com mulheres louras, talvez numa tentativa de se livrar da sensação de expatriados em sua própria terra natal.
Culpar unicamente a televisão pela divulgação constante da forte ideologia que afeta a auto-imagem dos negros seria injusto e demonstraria capacidade limitada de leitura da realidade, já que a discriminação racial em nossa sociedade está presente em cada esquina elegante dos bairros nobres, em cada elevador dos prédios de apartamentos, em cada sala de aula dos cursos universitários. Mas uma análise mais criteriosa da programação televisiva brasileira pode demonstrar que este veículo de comunicação tem tido, sim, papel preponderante na manutenção do racismo camuflado que existe no Brasil.
É sabido que os meios de comunicação apenas divulgam os costumes, a cultura, os sistemas jurídico e político de um país. E se eles transmitem mensagens que desqualificam determinadas minorias é porque talvez exista todo um aparato ideológico a fornecer-lhes o respaldo necessário. Essa situação nos provoca a dois questionamentos: a TV distorce a realidade para acomodar o estilo ideal de vida do brasileiro branco ou age deliberadamente no sentido de prejudicar a auto-imagem do brasileiro negro?
Independentemente das respostas, uma certeza nós já temos: a televisão, assim como os outros veículos de comunicação de massa, não defende os interesses dos negros. Constatação que levou o então deputado federal Paulo Paim (PT-RS), hoje senador, a apresentar o Projeto de Lei nº 3.198/2000, para que seja garantida a atores negros a reserva de um percentual de 25% das vagas existentes em programas de teledramaturgia das emissoras de TV e 40% em comerciais.
Nação multirracial
Essa lei já foi aprovada pela Comissão de Ciência, Tecnologia e Comunicação da Câmara, e não se sabe quando deverá ser votada em plenário, e vem causando enorme descontentamento. Em artigo publicado na revista Bravo, o roteirista Aguinaldo Silva ameaça ‘pedir o boné’ e ‘deixar de escrever novelas’, já que a lei seria ‘interferência demais’ em seu trabalho. Com a sapiência que lhe é digna, o autor de telenovelas do horário nobre da Rede Globo de Televisão pergunta: ‘Não seria a realidade que devia mudar primeiro, em vez da dramaturgia?’.
De fato, se a televisão tem sido injusta com os negros, a realidade tem sido mais ainda. E foi esse desprezo da mídia em relação aos assuntos das minorias que levou o jornalista Washington Novaes a fazer uma pergunta tão provocativa quanto a do roteirista global: ‘Como o Brasil pode chegar a ser uma sociedade democrática se os interesses de milhões não aparecem na comunicação?’. Tudo bem que não somos uma democracia racial, mas não ser nem mesmo uma democracia já é algo preocupante demais. O sociólogo Clóvis Moura adverte sobre a necessidade da verdadeira integração do negro em todos os aspectos da vida do país ‘se o Brasil não quiser continuar sendo uma nação inconclusa, como é até hoje, isto porque teima em rejeitar, como parte do seu ser social, a parcela mais importante para a sua construção’.
Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado no início de 2002, revela que 70% dos 53 milhões de brasileiros pobres são negros. São pessoas que quando ligam seus aparelhos de TV vêem um país louro, muito diferente daquele que eles conhecem em seu dia-a-dia. Um país cuja elite parece envergonhar-se de sua pele escura, associando-a à feiúra, à preguiça, à violência e à falta de educação e solidariedade, esquecendo sua importante contribuição para o enriquecimento desta mesma nação que os discrimina.
Todo e qualquer estudo ou manifestação que venha a contribuir para o questionamento desta realidade perversa, na qual os meios de comunicação se inserem com destaque, estará prestando serviço ao amadurecimento do nosso próprio país, que parece recusar-se a se assumir como nação multirracial.
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Jornalista, professor e doutorando em Ciências Políticas e Administração Pública pela American World University of Iowa, EUA