A pauta é nobre e ‘quente’. Uma série de reportagens sobre transplantes de órgãos aproveitando o mote do lançamento, pelo Ministério da Saúde, da Campanha Nacional de Doação de Órgãos e Tecidos. O ponto de vista, ao contrário do que se habituou esperar da cobertura jornalística sobre questões de saúde, é positivo. E inspirador. Mostrar histórias de sucesso, enfatizando a solidariedade de brasileiros que ajudaram a salvar vidas. ‘Histórias de esperança e de gratidão’, afirmou a apresentadora do Jornal Nacional da Rede Globo, Fátima Bernardes, na abertura da primeira matéria da série, na segunda-feira (24/9).
Na edição seguinte do Jornal Nacional, porém, surge uma incômoda pergunta para quem assiste ao telejornal e torce para que mais e mais brasileiros tenham uma segunda chance: qual o limite entre a veiculação de uma campanha sobre doação de órgãos humanos na maior rede concessionária do serviço público de radiodifusão do país e a utilização dessa campanha como instrumento de merchandising do jornalismo dessa própria rede de televisão? Em outras palavras, qual o limite entre o jornalismo com responsabilidade social e o merchandising da responsabilidade social para legitimar a função social do jornalismo?
Morte cerebral
Os telespectadores não tiveram como escapar a essa questão diante de duas reportagens da série sobre transplantes.
No dia 25/09/07, a segunda reportagem da série ganhou a manchete principal da escalada:
**
‘Petrolina, Pernambuco. O disparo acidental de uma arma tira a vida de uma menina de 10 anos. Jéssica era uma brasileira solidária e tinha assistido às reportagens do Jornal Nacional.’Corta para o pai da menina. Diz ele, em depoimento pungente:
‘Ela falou para a avó dela que um dia, quando ela morresse, fizessem o mesmo, doassem alguma coisa dela’.
Volta a manchete:
**
‘E os órgãos da menina ajudam a salvar outras crianças.’Na matéria de 3min45s – uma ‘eternidade’ na TV –, a repórter Mônica Silveira conta como um acidente não explicado entre três crianças que brincavam com um revólver guardado em casa resultou na morte da menina. Enfatiza a repórter, ao longo da matéria:
‘Quando os médicos constataram que Jéssica teve a morte cerebral, a família logo lembrou do que a própria menina tinha dito no fim de semana. Jéssica assistiu ao Jornal Nacional, que tem mostrado as histórias de pessoas que receberam órgãos doados.’
Vinte e dois dias
A reportagem narra a saga dos órgãos retirados do corpo de Jéssica – o fígado, as córneas, os rins – e transplantados em outras crianças a quilômetros de distância. É o primeiro transplante da central de Petrolina, Pernambuco.
Um médico esperançoso – o número de transplantes de fígado no mês de setembro, naquele estado, passou da média de três para seis – identifica ‘a campanha’ como a responsável pelo avanço. Declara ele:
‘Isso é um reflexo da campanha que está sendo feita. A população responde. As pessoas deixam de negar. As pessoas que trabalham nos hospitais passam a notificar à central de transplantes de órgãos, e com isso, a gente pode salvar muito mais vidas.’
A qual campanha o médico entrevistado se refere? A do Ministério da Saúde ou a do Jornal Nacional?
Na quarta-feira (26/9) vai ao ar a terceira reportagem da série. A doação dos órgãos de Jéssica continua a ganhar destaque no espelho do telejornal. Além disso, o próprio Jornal Nacional, como um personagem da matéria, insiste em demonstrar seu papel na vida dos cidadãos:
Diz o primeiro parágrafo da reportagem:
‘Há sete anos dona Vilma começou uma viagem pelo Brasil em busca de novas córneas para o filho mais velho, que na época tinha 12 anos. Depois de assistir a uma reportagem do Jornal Nacional, ela saiu de Bom Conselho, onde vivia no agreste de Pernambuco, e foi até Sorocaba, em São Paulo.’
Dona Vilma confirma em testemunho semelhante aos muitos que são apresentados diariamente nos canais de proselitismo religioso:
‘Eu assisti no jornal uma reportagem que estava sobrando córnea em Sorocaba. Foi uma viagem de 22 dias, foi cansativa, mas valeu a pena’.
Drama humano
O tema da doação e transplante de órgãos humanos foi pauta também nos telejornais da Band e da Record. Por outro lado, não é novidade que telejornais façam chamadas ostensivas para outros programas de suas redes. Na sexta-feira (28/9), até os telejornais locais da Rede Globo fizeram ‘reportagens’ sobre o mistério da telenovela Paraíso Tropical: quem matou Taís, a gêmea malvada? O que parece ser novidade agora é a necessidade de o Jornal Nacional enfatizar a sua própria influência no cotidiano dos brasileiros.
Qual critério jornalístico justificaria a relevância dada ao próprio Jornal Nacional, isto é, a ênfase na auto-referência? Se fizéssemos um exercício simples de exclusão do ‘personagem’ Jornal Nacional das duas reportagens, estaríamos incorrendo em algum erro factual? Faltando com a verdade? Diminuindo a relevância das comoventes histórias contadas?
Os teóricos da indústria cultural diziam que ela se realiza plenamente quando seu conteúdo, transformado em mercadoria, se confunde com o anúncio permanente de si mesma.
Será que o jornalismo para ser ‘um produto de utilidade social’ e ‘uma área de utilidade pública por excelência’ – como já afirmou o editor-chefe do JN – precisa fazer uso de uma lógica disfarçada na qual se reafirma a toda hora como produto de consumo indispensável?
Escondida na construção jornalística de um drama humano pode estar, na verdade, uma lógica que obedece, primeiro e acima de tudo, às exigências do ‘senhor’ mercado. Mesmo que se trate de uma questão de vida ou morte.
******
Pela ordem, pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007); e jornalista, pesquisadora do NEMP e doutoranda em Comunicação (Jornalismo) pela Universidade de Brasília