Em semana ruim de filmes, excelentes documentários sobre a imprensa encheram os olhos do assinante da TV paga. No sábado (15/10), o Telecine Classic, da Net, reprisou o documentário Filmando a Segunda Guerra (Shooting War, 2000), de Richard Schickel. O filme estreou no canal em 2002, mas valeu a pena rever porque na quarta-feira (12/10) o HBO exibira Control Room (2002), sobre a cobertura da invasão do Iraque. Também não era inédito na TV, mas foi ótimo poder comparar esses dois retratos da mídia em situação de pressão.
Shooting War é produção de Steven Spielberg. Dois anos antes ele dirigira a premiada ficção O resgate do soldado Ryan, com Tom Hanks. O próprio Hanks é o narrador emocionado das histórias dos fotógrafos e cinegrafistas americanos que arriscaram a pele para documentar o dia-a-dia da Segunda Guerra Mundial, que tirou 40 milhões de vidas. Este é o aterrador número de mortos que o narrador anuncia no fim do filme, nunca antes oficializado. O balanço das baixas parece subir 10 milhões de tempos em tempos. No início dos anos 70, quando sabíamos de 20 milhões de mortos, historiadores diziam que ‘é preciso divulgar as perdas aos poucos’. Quem acreditaria que de 1914 para cá o planeta teve 114 milhões de mortos em guerras? Pois são os números oficiais.
O rosto preservado
O documentário tem 90 minutos de numerosas imagens inéditas. E há informações inéditas também sobre imagens conhecidas. Era uma vintena de profissionais, nem todos vindos da imprensa, mas todos incorporados a batalhões especiais de fotógrafos do Exército ou dos Fuzileiros (não eram embedded, eram soldados de verdade, previamente treinados; apenas não empunhavam armas, e sim câmeras).
Não raro filmaram uns aos outros em situação de alto risco no front da Europa ou do Pacífico. Se Spielberg teve a idéia do documentário ao pesquisar o roteiro do Soldado Ryan, certamente não saiu desse material o lastro para a longa cena inicial que descreve os horrores da invasão da Normandia: depois de recolhidos por um oficial, todos os filmes feitos no Dia D, menos um, perderam-se no mar. O que sobrou mostrava o day after de soldados exaustos, parados, em choque.
Fica-se sabendo que a iniciativa da documentação criteriosa do teatro da guerra foi das autoridades militares americanas, e a elas pertencia o material. As imagens mais terríveis foram censuradas na época, para não chocar o público – como a cena de um bebê japonês afogado, que faz chorar: a circunstância da morte dele é das mais trágicas do filme, contada pelo próprio cinegrafista, cuja voz soa baqueada. Também a agonia de um soldado japonês em chamas provoca soluços. Um dos profissionais conta que filmava tudo, os corpos caindo sob as balas, os ferimentos, os mortos, mas procurava preservar o rosto das vítimas, em respeito às famílias. O documentário termina com indescritíveis cenas das bombas atômicas no Japão. Houve críticas nos Estados Unidos: o filme ‘não deveria ter sido exibido na TV’. O outro documentário, então…
‘Só estava curiosa’
Control Room – Different channels, different truths, ou ‘Sala de controle – canais diferentes, verdades diferentes’, foi exibido em 2004 no 20º Festival de Sundance, e oito meses depois já chegava ao Festival do Rio, com o título de Central Al-Jazeera. Coberto de elogios pela mídia dos Estados Unidos (uma certa mídia crítica, que não se presta a justificar ‘guerras preventivas’), tem direção de Jehane Noujaim, cineasta americana nascida no Egito. Um olhar, portanto, preso entre dois mundos.
O filme se passa em Doha, a capital do Catar, minúsculo país construído sobre imensas jazidas de petróleo. Expõe as imagens da invasão do Iraque registradas pelas câmeras do bem-sucedido canal de notícias al-Jazira, propriedade do poderoso emir dono do país, exibidas ao mundo árabe a partir de seu control room, a sala de controle da emissora em Doha. Numa parede repleta de telas, jornalistas islâmicos e ocidentalizados acompanham por satélite tudo o que se passa no resto do mundo. Mas não copiam o resto do mundo.
Jehane Noujaim disse em entrevista no ano passado que sua intenção não era provar que a Jazira foi a única TV a cumprir seu papel no Iraque. ‘Eu só estava curiosa para saber quem era esse pessoal tão criticado no mundo islâmico e tão criticado nos Estados Unidos’. De fato, aparecem xingando a emissora, entre outros menos votados, o cândido secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld (‘Mentiras sobre mentiras!’) e o folclórico Mohamed Said al-Sahaf, ministro da Informação de Saddam Hussein (‘Pura propaganda dos americanos!’).
Semana de perguntas
Um bom sinal. A Jazira exibia o tempo todo imagens perturbadoras de corpos de civis e ruínas de prédios, tudo alvo dos bombardeios ditos cirúrgicos. Imagens jamais mostradas aos americanos. E também os briefings do Pentágono ‘muito tempo depois que outras redes, entediadas, haviam desistido’, como reportou o enviado especial de The New York Review of Books, Michael Massing [ver remissão abaixo]. No documentário, o produtor e apresentador Samir Rader, sujeito de modos mansos que numa cena repreende um subordinado por agendar entrevistado ‘radical’ demais para seu programa na Jazira (a entrevista não dura 2 minutos), declara o seguinte: ‘Esta TV existe para ensinar ao povo uma coisa chamada democracia e o respeito à opinião do outro’. O passaporte de credibilidade do documentário é a confissão deste personagem, um dos principais do filme, muitos minutos depois: ‘Meu sonho é mandar meus filhos estudarem nos Estados Unidos’.
Credibilidade, que fique claro. Não objetividade. ‘Objetividade é miragem’, diz uma editora morena da Jazira, pressionada por uma repórter loura que a entrevista – sob a lente indiscreta da câmera de Jehane Noujaim. Para fugir de miragens, a Jazira, sem o menor ‘padrão Globo de qualidade’ (o que quer que isso represente), joga tudo no ar: as vítimas em sua profunda miséria, a destruição em estado absoluto, a revolta geral, a versão oficial. Tudo quer dizer ‘o tudo’ que a gente não viu na BBC, na CNN Internacional (a edição americana viu menos), na Fox News (muito menos) nesses quatro anos desde a invasão. Em texto de 25/9/2004, o jornalista Ivson Alves diz: ‘Realmente, depois de assistir à obra, quem ainda acreditar que objetividade – e isenção e imparcialidade – jornalística existe vai entrar no rol daqueles que crêem em Papai Noel, Coelhinho da Páscoa e Mula Sem-Cabeça’.
Viva o documentário! A semana pródiga em informação serviu para juntar contextos, tirar conclusões. E fazer perguntas. O que, por todos os demônios, nos distancia de uma visão ampla? Por que temos que reproduzir sentidos externos, como um quintal do pensamento alheio? Por que não assumimos que somos subdesenvolvidos desavisados e não jogamos tudo no ar? Por que engessamos a informação em moldes distantes? Por que somos subafluentes do jornalismo?
História esquecida
O mundo real está em outra, abrindo fronteiras de realidades, expondo fraturas, colando, reagindo. Na TV (a paga…), aqui e ali, salvam-nos Silio Boccanera, Jorge Pontual ou Chico Sant’Anna, pérolas raras que ousam pensar e mostrar o que pensa o mundo pensante pluralista [ver ‘Coisa boa na telinha – 2’, nesta rubrica]. Não combina com democracia esse jornalismo recolhido, amargurado, fantoche. Entulho autoritário a virar cicatriz permanente.
Lamentamos informar ao público: quem acha que acompanhou a Guerra do Golfo 2 assistindo à CNN, à BBC e aos demais canais estrangeiros terá um profundo choque vendo Control Room. Um dos ótimos personagens do documentário, que fustiga o porta-voz de plantão no Centro de Comando da Coalizão em Doha, custa a entender – ou finge custar, não importa – a americaníssima expressão redutora CentCom. ‘SitCom?’, pergunta ele. Poucos viram essa comédia de situação.
A imprensa americana certamente filmou e fotografou tudo o que viu no teatro de guerra iraquiano – ela tem história. O problema é que o material não pertencia aos militares. A censura a esta guerra foi e continua imposta pela própria imprensa, e poucos se atrevem. ‘No longo prazo, a verdade abre seu caminho até os ouvidos, os olhos e os corações do povo’, disse no filme o jornalista e professor egípcio Abdallah Schleifer. Esperemos. Até lá, viva o documentário.