‘‘O que é um editorial? No Público, parece ser um espaço reservado a artigos de opinião cujos autores pertencem ao quadro do jornal. É isso um editorial? Se é, como se legitima o realce dado a essas opiniões pessoais, no lugar de honra que o jornal lhes reserva? O que é que recomenda especialmente os redactores do Público para emitirem, do alto do ‘editorial’, uma opinião sobre qualquer assunto, por mais complexo que seja? O que é que, por exemplo, nessa perspectiva, legitima o especial ênfase conferido à campanha ideológica do Director do jornal — o qual, obviamente, publica aí os seus artigos quando quer?
Há, porém, outra maneira de entender a secção de um jornal a que se chama ‘editorial’, e é possível documentá-la com múltiplos exemplos tirados da imprensa internacional. Nessa outra versão, o ‘editorial’ é um artigo através do qual se exprime ‘a opinião do jornal’, seja qual for o processo pelo qual esta seja determinada. O jornal ergue-se, assim, como uma ‘instituição’ da sociedade civil, que tem uma palavra a dizer sobre os temas mais relevantes. Não é forçoso que essa opinião tenha uma linha férrea de obediência partidária ou de militância ideológica, como sucede com os textos do Director desse jornal. Pode, até, tratar-se de um encargo do Director — o de formular a opinião do jornal. Mas aí podem surgir problemas. Se o jornal é de um partido, ou serve um centro de interesses, ou segue uma tendência conhecida, a coisa é simples e transparente. Mas se não é assim, tem que haver um processo interno de formação da ‘opinião do jornal’. Ela, sem deixar de ser discutível e rejeitável, torna-se particularmente atendível, provindo de um centro de recolha, análise e apreciação de dados como é (ou pode ser) a redacção, incluindo o seu director. Ora, se a noção de ‘editorial’ tem este conteúdo, parece que, de duas uma: ou se elimina a designação com que se distinguem os artigos de opinião de redactores do Público, ou se encontra maneira de definir e exprimir, nesse lugar, a ‘opinião do jornal’.
Creio que os leitores apreciariam esta mudança, num jornal em que já superabundam os artigos de opinião individual. Este facto torna claramente dispensável a girândola de palpites que se oferece sob o rótulo (a meu ver, mistificatório) de ‘editorial´‘, escreve António Fernandes.
Os reparos do leitor de Paço de Arcos são pertinentes.
Inquiri o director.
‘Há, nesta carta, alguns equívocos que importa esclarecer.
O primeiro é que existe um só tipo de ‘editoriais’ na imprensa de referência e que estes, de alguma forma, traduzirão a ‘opinião do jornal’, seja qual o processo a que ela se chega. Mas na verdade existem diferentes fórmulas e a adoptada pelo Público há 16 anos (e desde então vertida para o Livro de Estilo), sendo relativamente rara, não é única. É, por exemplo, a fórmula do Libération. Aproxima-se, mas noutro registo, da do La Vanguardia, onde coabita um texto diário do director com editoriais não assinados. Em Portugal é a mais habitual, tendo sido adoptada pelo ‘Diário de Notícias’ e já tendo sido utilizada pelo Expresso. Radica na tradição de textos como os de Francisco Sousa Tavares, por exemplo, na velha A Capital. Mais: mesmo nos jornais que possuem editoriais não assinados, por vezes, os respectivos directores intervêm com textos especiais, a que dão destaque de primeira página (como sucede, por vezes, no El País, La Repubblica ou Le Monde).
A tradição anglo-saxónica é claramente outra, sendo que aí se pode chegar ao limite de existir um director para a redacção e outro para as páginas de opinião, trabalhando em andares ou mesmo em edifícios diferentes (casos, por exemplo, do New York Times ou do Wall Street Journal). Por regra esses jornais têm uma orientação política definida claramente assumida, chegando ao ponto de recomendar, nos editoriais, em quem se deve votar. Porém, de quem é a opinião reflectida no editorial. Do director? Da direcção? Do proprietário (uma das situações mais frequentes)? Da redacção (talvez a situação mais rara)?
Ora, ao criarmos o Público, entendemos que este não devia seguir uma linha editorial politica ou ideologicamente alinhada, daí decorrendo que (a) os editoriais deviam ser assinados pelos membros da direcção editorial pois assim apenas comprometiam os seus autores, (b) os colunistas deviam representar as diferentes sensibilidades politicas, sociais e culturais (algo que, por regra, não sucede na imprensa anglo-saxónica), e (c) devia respeitar-se a liberdade dos jornalistas terem diferentes olhares sobre a realidade dentro dos limites impostos pelo rigor e pela seriedade. As reportagens, notícias ou análises do Público não ‘ilustram’ ou ‘desenvolvem’ as teses defendidas nos editoriais, ao contrário do que sucede na Economist, por exemplo, onde não é por acaso que nenhum dos textos é assinado. Num país tão pequeno e com tão poucos leitores, o Público optou por não ser ‘de esquerda’ ou ‘de direita’ ou outra coisa qualquer, antes por ser o Público na sua pluralidade de pontos de vista.
O segundo equívoco do leitor é que devia procurar uma espécie de ‘opinião média’ da redacção, o que não é possível ou praticável. Pior: se tal se tentasse fazer (como tentámos episodicamente em 2000, aquando da reformulação gráfica do jornal), depressa cairíamos em textos baços e neutros. Daí que tenhamos regressado à fórmula dos editoriais assinados, mas assertivos e naturalmente mais polémicos, podendo mesmo expressar pontos de vista diferentes conforme os seus autores. Sem esta fórmula nunca o primeiro director do Público, Vicente Jorge Silva, poderia ter escrito um editorial que o leitor talvez se recorde: ‘A geração rasca’.
A nossa preocupação, e a minha em particular, tem sido a de assegurar o pluralismo, mesmo quando isso implica ser eu próprio alvo de críticas de colaboradores do jornal ou de leitores. E é por isso que me orgulho de, por ocasião da Guerra do Kosovo, o Público ter-se distinguido do El País, de acordo com um estudo académico, não por nos editoriais se ter apoiado a intervenção, algo que aquele diário espanhol também fez, mas por neste a informação ‘alinhar’ com a opinião editorial, enquanto no Público era mais plural e aberta.
Quando à questão dos editoriais serem panfletos, respeito a opinião do leitor. E apenas obedecem à minha consciência, incorporando naturalmente a informação que recolho e as opiniões que ouço na redacção, mas nunca seguindo qualquer agenda escondida ou férreo dogmatismo. Será assim tão difícil entender que há quem pense pela sua cabeça e não se importa de, muitas vezes, defender opiniões minoritárias? E que fomentar o pluralismo e o debate é uma virtude, não um defeito?’, respondeu José Manuel Fernandes.
Por uma questão de limitação de espaço este debate prossegue, necessariamente, na próxima semana.’