Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Rui Araújo

‘É a quarta vez que escrevo sobre publicidade. Poderá parecer excessivo, mas não é uma obsessão intelectual ou impulsiva, antes pelo contrário.

A relação entre o jornalismo e a publicidade é talvez a questão mais importante que se coloca aos órgãos de informação contemporâneos.

É certo que a publicidade é essencial para a sobrevivência de qualquer jornal, mas não é menos certo que se o leitor não conseguir dissociar o jornalismo da propaganda comercial é a prática da informação que fica condenada a desaparecer.

Alguns leitores indignados com a publicidade inserida na reportagem sobre Zeca Afonso (publicada no passado Domingo) publicaram comentários em vários blogues ou escreveram ao provedor.

‘Esta semana não comprei o Público, não li a revista com o café e o pastelinho de nata da ordem, nem da desordem, estava com gripe, não das aves, das dores, no corpo, da febre, e na alma, da saudade, mas agora já sei que posso combater as ditas com ‘um analgésico em pó que o organismo absorve a uma velocidade 4 vezes superior’, a quê? À entrega dos Óscares para publicidade insidiosa e peganhenta, inserida no seio da intertextualidade por um punhado de euro/dólares, como se de um mau ‘remake’ de ‘Inserts’ se tratasse?

Valeu o alerta lançado por uma parceira de vistas, comprei o jornal atrasado, desfolhei a revista e li, vi, o que era impossível não ler, ver, como um terrível filme de terror parasita incrustado na nossa literacia multimediática, multicultural, multifacetada, mas cada vez mais cega de tão pobre de espírito e de tão virada para o olho que cada um se convence ter em terra de cegos (a Pub se encarrega disso mesmo), enquanto o público compra e o Público vende.

Contra tal estado de fitas, fica o alerta de Isabel Duarte. E Viva o Zeca, porque na terra dele, quem trepa no coqueiro é o rei.

E o que dirá o Provedor, testado jornalista, disto tudo?

Não se devem perder os próximos episódios’, escreve Vítor Reia-Baptista (Universidade do Algarve) no blogue ‘O charme discreto da bloguesia’.

O provedor recebeu, por outro lado, mensagens repletas de críticas.

‘ABJECTO. Não me enganei. Não queria escrever ‘Objecto’, ainda que isso de pouco me sirva. Na verdade, objectos é o que somos, nas mãos oficialmente impolutas de quem nos fornece ‘informação’.

No domingo passado, dia 26 de Fevereiro, li na PÚBLICA ‘A História do Homem que Combateu as Dores’, escrita a corpo destacado, inserida num filete e encimada pelas letras ‘Pub’.

A tal história fora colocada a meio da página 35 da revista. Nessa página finalizava o jornalista Paulo Moura, a história de um concerto de José Afonso. O artigo começara na página 27. Era impossível, portanto, não ler o ‘coração’ daquela página, ímpar, ‘nobre’ em linguagem jornalística, publicitando um medicamento que, entre outras dores, combaterá as ‘dores musculares’. Até porque a tal ‘História do Homem que Combateu as Dores’ começava com o lugar comum ‘É um homem de causas…’. Impossível não ler. Impossível não ler, porque o José Afonso morrera precisamente num final de Fevereiro, carregado de dor, física, mas, sobretudo, moral, porque sabia ser a sua morte premonitória: ela encerrava a visão baconiana da refocilagem no cadáver de ‘um homem de causas’.

Por isso, com as cores já ténues do mandato moral conferido pelo cantor à minha geração, peço-vos respeito – ou melhor, que o esqueçam definitivamente – porque ele não tinha nada a ver convosco, os que isto fazem, e morreu a tempo de não ver o que nos apresentam no prato, enquanto assobiam para o lado, marcando o ritmo desta procissão, onde asseguraram há muito a nossa presença, anestesiada e abúlica.

Abjecto, pois sirva’, refere a leitora Isabel Duarte na mensagem electrónica que enviou ao provedor.

Os protestos relacionados com a referida publicidade sucedem-se. E complementam-se.

‘O Público tem sido o meu jornal diário desde o seu lançamento. De vez em quando, e ultimamente com mais frequência, tem tido alguns comportamentos que me desgostam. É o caso de hoje (26 de Fevereiro de 2006) em que, ao ler um artigo da revista PÚBLICA sobre o último concerto do Zeca Afonso antes do ‘25 de Abril’ (da autoria de Paulo Moura) deparei na página 35 com um anúncio (PUB), bem no meio do texto do artigo, em que se fala de ‘A história do homem que combateu as dores’, que seria ‘um homem de causas’…

Fiquei estupefacto…

Será que vale tudo?

Será que o próprio Paulo Moura não fica incomodado com esta situação? Será que estando o articulista a falar de José Afonso, verdadeiramente um ‘HOMEM de Causas’ e que sofreu tantas dores, é pura coincidência o Anúncio de um analgésico (!!!) também ter por protagonista um ‘homem de causas’ e que tinha muitas dores? Será que não há um mínimo de respeito nem pelo alvo do artigo (Zeca Afonso), nem pelo articulista (Paulo Moura) nem pelos leitores do Público? Para um jornal como o Público, é uma vergonha e um erro indesculpável’, pergunta o leitor José Barros Dias.

Mas há mais…

‘Gosto muito da vossa revista , e até acho que é uma das melhores mesmo comparando com as publicações com preço de capa, mas aquela publicidade no meio do artigo do Zeca Afonso é claramente um atentado ao bom gosto, se não mesmo às regras deontológicas, revelando uma promiscuidade entre jornalismo e marketing gritante e de todo evitável. Bem sei que está delimitada num quadrado e que lá está escrito ‘Pub’, mas num jornal que se diz e que se quer de referência, aquele título ‘A história do homem que combateu as dores’ a meio de um artigo sobre um homem que de facto combateu tanto as suas dores como as dores de um país é abusivo, e revela falta de bom senso.

O senhor provedor ainda este Domingo se referiu ao já famoso título do BES, e agora?

Se aqui se aplica também aquele título de um artigo do J. M. Fernandes relativamente à OPA da Sonae sobre a PT que era um ‘Viva o mercado’, e que por mais uns trocos vale tudo, eu respondo na mesma moeda e ou com muita pena mudo de jornal, o que será difícil porque o Público ainda continua a ser talvez o único de referência e a dedicar umas páginas à política que eu tanto gosto, ou pura e simplesmente deixo de comprar o jornal, e aqui já não é um ‘Viva o mercado’ porque quando não há alternativas…, mas pronto, vocês é que sabem o que andam a fazer e o caminho que querem tomar, só fico é triste porque ler o Público é um dos meus maiores prazeres’, acrescenta o leitor Marco Daniel Nicola.

Ao pedido de esclarecimento do provedor, Dulce Neto, a editora da revista Pública, respondeu: ‘Tratou-se de um lamentável incidente, de um descuido grosseiro da minha parte ao não reparar no devido tempo (o tempo de ser possível corrigir a minha, e apenas minha, decisão de publicação do anúncio naquele espaço) no conteúdo da publicidade em causa. Resta-me dizer-lhe ainda que a minha decisão se baseou em argumentos puramente gráficos: tratava-se do tema com menos recursos fotográficos e, desconhecendo eu, por negligência, o teor do anúncio, o que melhor suportava a inclusão desta publicidade. Concordo que se tratou de uma má opção, configurando assim um gesto de indiscutível mau gosto, pelo qual peço hoje publicamente, nas páginas da Pública, desculpas’.

De facto, o anúncio contraria não só o Código da Publicidade (parece uma notícia) como o próprio Livro de Estilo do Público. Para além de evidenciar um mau gosto inquestionável.

O provedor pediu, entretanto, a José Manuel Fernandes, o director do jornal, para se pronunciar sobre o polémico anúncio.

‘A publicação de anúncios, devidamente assinalados como tal, no meio de páginas editoriais ocorre há muito, no Público e na generalidade de imprensa, em Portugal como em muitos outros países.

Aquele anúncio vinha com a indicação, bem visível, de que se tratava de publicidade. A sua inserção no meio de um texto sobre Zeca Afonso resultou precisamente de o anunciante não escolher onde sai o anúncio e de a publicidade não conhecer o conteúdo editorial das páginas, e vice-versa. Não foi por isso detectado a tempo que o teor do anúncio podia parecer uma brincadeira de mau gosto.

Mesmo assim, a forma como o anúncio estava elaborado (imitando o formato de uma notícia do jornal) era incorrecta e o anunciante foi instado a modificá-la, o que já fez, devendo sair hoje mesmo na Pública um anúncio com o mesmo teor, mas um formato que, mesmo avisando tratar-se de publicidade, podia induzir em erro os leitores menos atentos’, comunicou o director.

As explicações dos dois responsáveis do jornal são perfeitamente aceitáveis.

O Público errou, reconheceu e corrigiu o erro.’