Depois de me remexer na cadeira por longos minutos procurando uma posição menos desagradável para ver o tal Ídolos, notei que o problema não era a forma pela qual estava sentado nem a cadeira: era o que estava vendo. O programa Ídolos, levado ao ar pela TV Record e agora em sua 5ª edição, é atestado da má qualidade que uma concessão pública, no caso a TV, insiste em servir ao público brasileiro. Muito já escrevi neste Observatório sobre a quintessência da frivolidade que é o Big Brother Brasil, muito já escrevi sobre o nivelamento por baixo, muito baixo, que certas novelas globais em horário nobre apresentam. Tratei aqui dos vendedores de ilusões em seus programas de auditório formatados para faturar com a indigência alheia. Agora é a vez de refletir um pouco sobre a aposta da Record.
Ídolos é baseado no formato criado pelo britânico Pop Idol e consagrado pelo American Idol, uma das maiores audiências da televisão norte-americana. Nos Estados Unidos, o reality show catapulta participantes ao estrelato. No Brasil, não chega a tanto, não avança para além da esquina, algo muitíssimo longe de atingir o estrelato ou o que isso signifique. Em poucas palavras, o programa não entrega o que vende: os vencedores do tal reality show, como Leandro Lopes (2006), Rafael Barreto (2008) e Saulo Roston (2009), simplesmente caíram no esquecimento dos telespectadores. Melhor sorte (será que isso é sorte mesmo?) teve Thaeme Mariôto, campeã da segunda edição (2007), quando chegou a vender mais de 50 mil cópias. O fato é que nem assim Mariôto arranhou as bordas do tão propalado estrelato.
Há muito não desperdiçava um quarto de hora de forma tão ridícula como o fiz na noite passada. O que vi, o que aturei por livre e espontânea curiosidade, apenas me confirmou o que já intuía: pessoas inteligentes falam de ideias, pessoas normais falam de coisas e pessoas medíocres falam de pessoas. E o corpo de jurados fala de pessoas e o faz tão somente para realçar o que deixam de ter: talento, musicalidade, boa voz, presença de palco. Os comentários da comissão julgadora fazem qualquer pessoa minimamente decente descrer da capacidade humana em expressar bons sentimentos, em mostrar algum grau de compaixão e até de civilidade.
Mau humor, grosserias e sorrisos irônicos
Formada por Luiz Calainho, Paula Lima e Marco Camargo, esta diabólica trinca se compraz em ridicularizar, ofender, insultar e humilhar – com pompa e circunstância – aquela legião de jovens desgarrados que se submetem ao circo de horrores que são as diversas fases do Ídolos com a vã intenção de se revelar ao país como ídolo pop, como alguém que por seu talento e mérito ‘venceu na vida’.
A verdade é que a luta pela audiência é irmã siamesa daquela modalidade de boxe ‘vale tudo’. E é atalho seguro para o escracho e a baixaria. Calainho e Camargo investem em perguntas claramente insultuosas, quando não preconceituosas mesmo. Paula Lima tenta se equilibrar entre os dois, mas termina fazendo o jogo destes que é o de colocar as ‘percepções’ deles mesmos na grande estrela do que vai ao ar e atende pelo nome de Ídolos.
O esporte que a trinca pratica é um só: mostrar crueldade com jovens desconhecidos, inexperientes, gente que parece ter apenas uma fraqueza – não medir esforços para conquistar um lugar sob os holofotes da fama fácil e fugidia, inconsistente e absolutamente ilusória. Acreditam que correm atrás do futuro sem perceber que desperdiçam o futuro de forma leviana e fugaz.
Os jurados carregam no descontraído teatro pastelão casado com o sucedâneo besteirol, fazem muxoxos, arremedam vacas pastando, esparramam-se nas cadeiras, tiram os sapatos, destilam mau humor e grosserias, esbanjam olhares e sorrisos irônicos e criam novas formas para manifestar seu puro desprezo contra a pobre vítima que, coração aos pulos, voz entrecortada, nervosismo à flor da pele, insegurança a mil, insiste em entoar dois ou três versos de alguma canção conhecida.
Escada para comentários vis
O apresentador Rodrigo Faro é esforçado, investe naquela roupagem da contumaz vã filosofice tantas vezes protagonizada por Pedro Bial, certamente seu alter ego. Parece estar fantasiado de ser humano a mostrar a compaixão pela condição humana tão aviltada ante a bancada do Ídolos. E não passa disso. Faro deseja roubar a cena dos participantes que, em última análise, são a razão do programa.
Detenho-me extensivamente no desempenho dos jurados porque foi isso o que mais me afetou, desagradou, no formato do programa. Penso que eles bem poderiam considerar dispensar os candidatos que não atendem à sua estética do que é ser ídolo de forma ao menos urbana. Poderiam simplesmente dizer que a pessoa não foi bem e que, ainda assim, agradeciam que ela tenha participado da seleção. Tomei conhecimento que uma jovem passou por várias fases e foi eliminada quase na final, quando o contingente se reduzira a não mais que 30 candidatos. O caso é que quando ela chegou ao teatro, o jurado Calainho lhe perguntou: ‘Você está preparada para as fases finais? Você sabe que de agora em diante a pressão será muito grande? Então, o que você me diz?’ A jovem respondeu timidamente: ‘Sim, estou.’ O Calainho a eliminou após dizer: ‘Pois para mim você não está!’
Outro (mau) exemplo: se uma candidata diz que sua mãe não acredita nela como cantora, é certo como a sequência dos dias da semana que um dos jurados, após estraçalhar a infeliz criatura, concluirá algo como: ‘Em seu caso, lamento mesmo você não ter dado ouvidos à sua mãe, afinal, mãe não mente…’ Os jurados se alimentam da espontaneidade dos candidatos que, por seu turno, mal compreendem que vão ali apenas para servir de escada para comentários vis.
O desejo de humilhar o semelhante
No segundo intervalo comercial, comecei a alinhavar mentalmente meus pensamentos. Havia em mim mal-estar tanto físico quanto emocional. Sentia que minha noite fora estragada impunemente. E o fizera porque seria impossível escrever sobre programa de televisão que ao menos não houvesse visto. Pois bem, fico ensimesmado ao ver porque a produção do dito ‘programa’ não faz a seleção longe das câmaras. Agindo assim, centenas de jovens seriam poupadas de brutais sofrimentos, de golpes potentes sobre autoestima pouco sedimentada.
É inegável que parte dos calouros atropelados pelos jurados pensam sinceramente que têm talento. Por outro lado, ‘os jurados’ também são fracos e – pareceu-me – sem conhecimento real de música. Daí para humilhar os calouros, é necessária mais que uma simples fagulha e o incêndio estará consumado. Um programa para ter calouros qualidade teria que ter um corpo de jurados também de qualidade como, por exemplo, o do Raul Gil. Fiquei desolado com o escracho. Pensei comigo: será que estes jurados entendem que personificam a que grau de miserabilidade um ser humano pode chegar? Arrogância, prepotência e mediocridade são destiladas aos litros nesse particular circo de horrores.
De repente, me vieram à mente cenas do Gladiador, dirigido por Ridley Scott e que conquistou o Oscar de melhor filme de 2001. O minúsculo palco de Ídolos assemelha-se à arena dos gladiadores do Império Romano. Lutadores desnutridos, meio que desarmados, sem boas espadas e sem escudos para protegê-los e tendo que enfrentar três sanguinários Cômodos, conchavados para emitir esgares de prazer antes de, ao mesmo tempo, posicionarem seus polegares para baixo. Pensei também como se sentiriam se percebessem em cada candidato aquela ligação que os une a seus filhos, ao menos aqueles que porventura estejam trafegando entre a adolescência e a vida adulta. Recomendaria à troica que revisse os videotapes do Velho Guerreiro, o sempre bom Chacrinha, aprenderiam que, mesmo para buzinar alguém, há que se ter certa dose de dignidade.
Não tarda muito e veremos espocar campanhas na internet – no twitter e nos blogues – contra um programa que amealha audiência despertando o que de pior possui o ser humano – o desejo de humilhar seu semelhante.
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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter