Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Show de bombas e hecatombes

A Ágora era a praça pública onde os antigos gregos atenienses reuniam-se para debater e deliberar acerca de suas questões políticas. Na Ágora se reunia a ecclèsia, assembléia dos cidadãos, para decidirem sobre os destinos de sua pólis, ou seja, da cidade.

Parece que a Ágora dos nossos dias é a televisão. Nela, os políticos (profissionais) exibem-se frente a uma assembléia atônita que não é consultada nas principais decisões que envolvem os destinos do país, contrariando Aristóteles, que definia ser o cidadão aquele que tem o poder de deliberar e interferir no ‘poder público de sua pátria’, na democracia (Aristóteles, Tratado da Política, Livro IV).

O espetáculo cotidiano das CPIs mostra o tipo de democracia que temos. É legítimo o jogo político das tribunas. Fazem parte do jogo as disputas políticas, às vezes de forma circense (não desejo ofender com essa comparação a arte circense, o espetáculo mais antigo do mundo), pois ‘o circo é o último vestígio de um saber antigo, existencial e iniciático’ (J. Ziegler). Portanto, é emblemático que no meio de tanta encenação nos confrontemos com algumas questões fundamentais que norteiam o debate sobre a representação na (nossa) democracia.

1) Que país é este onde a ética e a política deixarem de ostentar atributos da nobreza da ação humana e passaram a ser sinônimos de traquinagens de toda a ordem?

2) Será que alguns políticos consideram o palanque eletrônico uma espécie de picadeiro, onde encarnam os atributos do palhaço (mais uma vez peço desculpas aos artistas circenses, dignos e probos) e os telespectadores (platéia) são um bando de títeres, manipulados pela eloqüência das encenações (no picadeiro)?

3) Por que as peripécias políticas tanto nos atormentam e nos lançam num sentimento coletivo que beira a paralisia decisória, mesmo diante de tanta indignação?

4) Por que a mídia quer que o espetáculo continue, cada vez de forma mais caricata, a qualquer custo, e sem se preocupar com o aprofundamento dos problemas estruturais da nossa república, como os limites entre o público e o privado ou a relação do governante com a coisa pública?

5) E, fundamentalmente: quais os (verdadeiros) compromissos da imprensa brasileira?

Perguntas que devem nortear nossas reflexões nesses dias de espetáculo no Planalto Central. Entre malas e cuecas, nada melhor, nessas horas, que voltarmos a falar da necessidade de nos educarmos para uma leitura crítica da comunicação.

Pesquisa reveladora

Pouco se noticiou na imprensa um fato relevante, divulgado nesses primórdios de agosto, esse mês tão enigmático para alguns brasileiros! Em meio a tanta demanda por televisão em tempos de CPI, somente 32% da população estão satisfeitos com os programas televisivos.

Além disso, para a maioria dos telespectadores, a TV exagera em violência e sexo e deveria ser mais educativa, preocupar-se com as conseqüências do que transmite e ser mais controlada pelo governo. Isso mesmo: mais controlada pelo governo. Além de exigir o controle público da mídia – prefiro pensar antes em controle social do que em controle de governo, os entrevistados de uma pesquisa do Ibope, ao contrário do senso comum, percebem a baixaria em que vem se transformando a TV brasileira.

Esses são os resultados apresentados por Derli Pravato, gerente do Ibope Mídia, ao congresso da Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), em São Paulo. O portal UOL nos informa que a pesquisa demonstrou que apenas 10% das pessoas se identificam com personagens das novelas, desmistificando certas teorias tupiniquins que atribuem demasiado valor a esse gênero televisivo.

Condição amesquinhada

Quem tem televisão paga (e aqui estão situados os de maior renda e, provavelmente, maior nível de cultura formal) está mais descontente com a programação do que a média geral dos telespectadores: apenas 25% declararam estar satisfeitos com a maioria dos programas. Porém, um ranking dos ‘dez mais’ mostra que os reality shows são os campeões no Ibope, seguidos, nessa ordem, por conteúdo erótico, shows, esportes, musical, séries, jornalismo, debates, biografias e programas sobre turismo.

Estariam os telespectadores que assistem aos debates nas CPIs identificando nessas imagens semelhanças com os ‘reality shows?’ Afinal, noves fora o mau gosto desses programas, eles mostram ‘a vida como ela é’, nos melhores moldes de Nelson Rodrigues, que vale a pena ser lembrado nesses tempos de lavagem de roupa suja na lavanderia ‘Brasilis’. Afinal, nos escritos de Nelson, vida e obra entrelaçam-se de forma inexorável, já que é o destino cego e irônico que parece comandar os atos humanos. Então, por que condenar os políticos corruptos se todos estamos sujeitos às mazelas da vida?

Porém, ressalvemos a grandeza da obra rodriguiana, que extraía das mazelas mesquinhas e banais de pessoas comuns, do território pequeno-burguês sem horizontes do subúrbio carioca, dos casos comentados pela vizinhança e das notícias que não merecem primeira página, histórias que iluminam o palco da literatura, engrandecendo assim a condição humana. Neste sentido, os reality shows e, talvez, os espetáculos das CPIs são o contrário da obra de Nelson Rodrigues, pois amesquinham e banalizam a condição humana.

Insuportável companhia

Diz o Aurélio: ‘informar é dar informe ou parecer sobre; instruir e ensinar; confirmar, corroborar, apoiar; dar notícia ou informação a; avisar, cientificar; comunicar, participar’. Portanto, se na Ágora de nossos tempos os cidadãos não podem debater com seus representantes a fim de deliberarem sobre a política, cabe à imprensa, no caso, o telejornalismo, esse imprescindível e insubstituível papel.

Quando a imprensa, a mídia televisiva, se exime desse dever, o debate político empobrece, corre o risco de se tornar mera encenação de picadeiro. Com um agravante: à medida que transforma a tribuna política em palco, a mídia estimula o deboche dos telespectadores. Porém, se pensarmos com mais profundidade, quem seriam os palhaços nessa história?

A informação em tempo real, para competir com a internet, pode transformar a televisão, e pior ainda, o telejornalismo, numa insuportável companhia. Percebemos, em conversas com amigos, no ambiente de trabalho e em casa, que as pessoas não estão agüentado essa insana superexposição de escândalos superados por outros escândalos, numa roda-viva estonteante. Falta o devido aprofundamento das informações, cada vez mais opacas, num cenário em que a ‘bomba’ do presente sempre deverá ser suplantada pela ‘hecatombe’ de um futuro muito próximo. Aonde chegaremos?

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Filósofo, professor da PUC-Minas, especialista em teoria e prática da comunicação social