Num bem informado artigo publicado no Observatório da Imprensa [ver ‘TV pública não deve fazer entretenimento‘], o presidente da Radiobrás, Eugênio Bucci, defende a não recorrência ao entretenimento pela TV pública como forma de distingui-la da TV comercial. Considera essa opção o diferencial capaz de não apenas evitar a queda da audiência, mas alavancá-la pelo contraste com o excesso de entretenimento nas emissões da TV de mercado.
O artigo, como de resto tudo o que Bucci escreve, é inteligente, pertinente e oportuno. Mas merece observações que ofereço a título de contribuição ligeira ao debate. O objetivo é sedimentar alguns conceitos e referenciar atitudes a respeito desse moderno e democrático espaço de expressão midiática que no Brasil ainda é novo, e mesmo no resto do mundo ainda busca seu nicho e tenta definir seus limites.
Só para lembrar, a televisão brasileira surge como empreendimento privado em 1950 por iniciativa de Chateaubriand, com a inauguração da TV Tupi de São Paulo. E é a partir desse modelo, com a expansão do Grupo Associado (uma espécie de Rede Globo daqueles primeiros tempos, inclusive pela propriedade cruzada de meios de comunicação, só que administrados em forma de condomínio), que a televisão brasileira se funda e se desenvolve. O que se poderia chamar, com mil reservas, de embrião mal formado de TV pública, só começa a existir no Brasil a partir de 1958, com a entrada no ar da TV Cultura, canal 2, de São Paulo.
O primeiro canal de TV educativa só seria inaugurado quase dez anos depois, em Pernambuco (alguém me corrija aí, pois estou citando de memória). De qualquer forma, a trajetória televisiva do Brasil foi construída com base no modelo comercial norte-americano, na contramão da Europa, onde a TV surge não-comercial (e dependendo do país, com nuances específicas de formatos e fontes de financiamento).
A tal da TV pública
É conveniente e recomendável definir o tipo de televisão a que nos referimos. Sob o guarda-chuva da expressão ‘TV pública’ costumamos (erroneamente) abrigar um espectro amplo e diversificado de formatos de emissoras, apenas por não se enquadrarem na categoria de organismos de comunicação patrocinados pela iniciativa privada. Uma tentativa rápida e rudimentar de classificação poderia começar por distinguir as emissoras estatais das emissoras que, por falta de outra denominação, venho chamando de institucionais.
No primeiro grupo estaria, por exemplo, toda a gama de emissoras governamentais (o complexo Radiobrás). Noutra categoria (institucionais), podem ser agrupadas as emissoras de divulgação de instituições que compõem o Estado mas não têm foco na divulgação dos atos do Executivo. É o caso das TVs Câmara, Senado, Justiça, e todas as emissoras legislativas. Na categoria TV pública temos, então, a TV Cultura de São Paulo e, com ressalvas, dá para colocar no mesmo escaninho as educativas e as universitárias. É claro que, apesar das diferenças, todas guardam pontos de interseção entre si, tanto nos objetivos como na gestão ou na forma do financiamento.
A única maneira de ampliar o conceito de TV pública para que abarque outras categorias de emissoras é tratá-las a todas como emissoras ‘em transição para a TV pública’, seja pela maior democratização na gestão e na programação, seja na participação maior da audiência através do acesso da sociedade organizada às instâncias de formulação de suas programações. Uma emissora se torna menos estatal ou institucional quanto mais ajusta seu foco ao interesse público (e não do estado ou da instituição a que serve, e menos ainda aos interesses de seus eventuais dirigentes, eleitos ou nomeados).
Entretenimento vs. conteúdo
Isto posto, chegamos finalmente à questão central da postulação de Bucci: a adoção ou não pela TV pública dos mecanismos de apelo ou formatos considerados próprios do entretenimento, uma área de exploração teoricamente restrita à TV comercial e interdita à TV pública. A radicalização não nos parece apropriada, pela existência de uma zona de sombra onde é inevitável a adoção de elementos do entretenimento para permitir a própria realização da comunicação. Adoção que já acontece hoje, ainda que de forma velada.
Se alargarmos o conceito e sairmos dos limites puramente etimológicos definidos no artigo de Bucci, podemos perfeitamente incorporar ao campo do entretenimento desde a animação artística das vinhetas eletrônicas, a concepção criativa dos cenários, a criatividade dos recursos da iluminação, o poder de envolvimento dos temas musicais criados para apresentar programas ou funcionar como trilhas e, por último, até mesmo figurinos, penteados e adereços, sem falar nos recursos de ritmo e ilustração visual das produções telejornalísticas.
Dentro do mesmo raciocínio, podemos enquadrar no conceito de entretenimento aspectos relacionados ao próprio conteúdo da programação, como a temática de certos documentários e todas as apresentações artístico-musicais. Esses ‘auxílios luxuosos’ fazem parte das ‘embalagens’ dos conteúdos obrigatórios, os hard (news ou não) específicos de cada emissora. Sem tais embalagens é praticamente impossível ‘vender’ atualmente a ‘mercadoria’ de cada uma.
Para muitos intelectuais, tal constatação chega a ser dolorosa, mas é inevitável. Tem a ver com o próprio fato de que a percepção da mensagem televisiva vem sendo moldada a partir de preceitos oriundos do conceito de conquista e manutenção de audiência. Vale dizer: determinado conteúdo, por melhor e mais atraente que seja, não será fruído nem absorvido se não contiver elementos que o tornem palatável e atraente. Esses elementos são buscados no território do entretenimento, no mundo do show business, nos formatos dos programas de auditório, nas técnicas dos folhetins eletrônicos, nos modelos hollywoodianos do telejornalismo moderno.
Caberia aqui uma digressão para discutir benefícios ou malefícios dessa apropriação. Não é o caso. Fiquemos com a constatação singela: essa apropriação existe. E abdicar dela seria abdicar da própria capacidade comunicativa do veículo. Um exemplo rápido, só para ilustrar: será que um noticioso como o Repórter Esso, apesar da competente narração de Hilton Gomes ou Heron Domingues, teria alguma chance de disputar audiência nos dias de hoje, mantendo o formato dos anos 1950? Certamente que não.
As novas técnicas de apresentação da notícia com o aprimoramento visual e o uso dos recursos de sedução da audiência (extraídos do campo do entretenimento) deixaram de ser opcionais – tornaram-se obrigatórios. Televisão (qualquer televisão: pública, privada, educativa, universitária etc.) já não pode prescindir do aprimoramento formal, que incorporou e continua incorporando ingredientes extraídos do mundo do entretenimento.
Audiência não é palavrão
Por essas razões, tenho para mim que não incorro em erro ao considerar impositiva a presença dos elementos do entretenimento na (vá lá, usemos o termo, apesar de suas impropriedades) televisão pública. E não vejo o fenômeno como uma sucumbência mas como desafio aos realizadores, obrigados a dosar com sabedoria quantidades e qualidades de cada ingrediente a fim de que os conteúdos hard das emissoras não-comerciais se tornem atraentes e competitivos com os conteúdos do restante do espectro de canais, sobretudo dos comerciais.
Partindo-se do pressuposto de que comunicação se realiza no receptor e não no emissor, ou a televisão pública incorpora (com as cautelas que tal operação exige) elementos extraídos do mundo do entretenimento para embalar sua produção ou perderá a capacidade de disputar audiência. E sem audiência qualquer emissora perde a razão de ser.
Não taxemos audiência de palavrão. Para a TV pública, audiência não pode ser a força motivadora que é para a TV de mercado. Mas o conteúdo da TV pública (por mais importante, relevante e insubstituível) não consegue se impor de forma autônoma, a ponto de conquistar e manter a atenção do telespectador e assim cumprir sua função.
A civilização da imagem não é opção, é imposição. Chegou e se instalou com suas regras, exigências e formatos. E não há retorno, a menos que se desinvente a televisão. Como diz Bucci, a TV pública não pode prometer entretenimento. Mas, digo eu, pode, sim, oferecer o seu hard numa embalagem bonita e gostosa, com cara, jeito e gosto de entretenimento. Importante é saber navegar sem perder o foco nem cair em exageros como o de contratar a Sílvia Poppovic para levantar a audiência, como aconteceu com a TV Cultura de São Paulo. Ou promover um Big Brother com intelectuais, como algum engraçadinho aí chegou a sugerir. Também não vale contratar o Sérgio Mallandro para apresentar um programa sobre cidadania. Tal como na deliciosa provocação de Tim Maia, ‘pode tudo, só não pode dançar homem com homem, nem mulher com mulher’. O resto pode.
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Jornalista, professor e pesquisador em Comunicação