Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Sou Zé Mané, mas pode me chamar de Homer Simpson

Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, contava que o pernambucano Antônio Maria, roteirista e apresentador de programas de rádio e TV, certa ocasião foi desafiado por Péricles do Amaral, então diretor da TV Rio, a reescrever um texto humorístico de forma a que as mensagens pudessem ser assimiladas mais facilmente pelos telespectadores. Trocando em miúdos: o autor deveria escrever considerando as experiências sensoriais de um público tido como medíocre; ou, conforme as considerações de William Bonner, escrever para os Homer Simpsons da época. Antônio Maria, mesmo discordando do chefe, resolveu atender ao seu desafio; porém, ao entregar os novos originais, esclareceu: ‘Pior do que isso, eu não sei fazer.’


Faz muitos anos, eu imaginava que a maior parte dos autores de telenovela já teria alcançado a ‘performance’ de Antônio Maria, ou seja, há muito tempo eu acreditava que os novelistas brasileiros já teriam conseguido alcançar as marcas mais profundas na escala da mediocridade que parecem buscar propositadamente. No entanto, a cada nova produção, me surpreendo com a capacidade que eles têm de transformar em lixo midiático aquilo que deveria ser uma obra de arte para o entretenimento do grande público.


Sucesso pressupõe respeito


Aguinaldo Silva, no seu blog, fala do sucesso de audiência de Duas Caras, telenovela de sua autoria, em exibição na Rede Globo, depois do Jornal Nacional:




‘Vocês sabem que eu adoro números. Ainda mais aqueles que saem dos fornos do Ibope como se fossem pães de queijo quentes e fofinhos. Esta semana, pelo menos pra mim, até agora as fornadas foram especialmente deliciosas. Senão vejamos: segunda-feira, Duas Caras, 42; os outros canais juntos, 24; terça, Duas Caras, 42; os outros canais juntos, 25; quarta, Duas Caras, 43; os outros canais juntos, 26; quinta, Duas Caras, 45, os outros canais juntos, 24. Haja pão de queijo, né não? Estou engordando! Mas há quem diga aqui [no blog] e alhures, como se fosse um zumbi que conseguisse andar apenas de costas, que a nossa novela é um fracasso. Eu leio tamanhas sandices, caio na risada e trato de dançar um mambo.’


Assim como a simples ‘fama’ virou sinônimo de ‘sucesso’, o que importa para os folhetinistas são os números do Ibope. Evidentemente, se os medíocres têm como meta o maior número de audiência, a qualquer custo, e chegam lá, isso será considerado um tremendo ‘sucesso’, mesmo que as suas produções não manifestem qualquer preocupação com os valores morais, ou não revelem exercício intelectual expressivo, que seriam requisitos indispensáveis para determinar o bom êxito de qualquer empreendimento.


Recentemente, nos EUA, um jovem fuzilou oito pessoas e suicidou-se num shopping, em Omaha, Estado de Nebraska, deixando uma mensagem na qual dizia que, a partir daquele ato tresloucado, tornara-se famoso. ‘Agora sou famoso’, escreveu o pobre rapaz, de 19 anos, antes mesmo de praticar a matança e sabendo que nem ele próprio iria ‘desfrutar’ a má fama. Não se pode negar que o jovem se tornou famoso e entrou para a história dos maiores chacinadores juvenis daquele país. Entretanto, onde está o sucesso do seu ato? Sucesso pressupõe respeito e admiração por alguém ou pela sua obra; enquanto, para a fama (boa ou má), considera-se apenas a repercussão do acontecimento.


O embalo midiático


O que pode levar uma pessoa a comprar determinado produto de qualidade inferior? Os motivos são basicamente três: ou se tem pouco dinheiro para comprar um produto melhor, ou não se dispõe de produtos melhores naquela praça, ou se desconhece a qualidade dos produtos em oferta. Em meio a essas opções, um produto que estaria fadado ao fracasso pode se tornar um ‘sucesso de venda’. No caso das telenovelas, sucesso de audiência, que se traduz em faturamento.


Aguinaldo Silva e a Central Globo de Produção podem comemorar elevados índices de audiência das telenovelas, afirmando que foram ‘bem-sucedidos’ na tarefa de manter um grande número de telespectadores ligados na Globo, mas não podem garantir que seus produtos fazem sucesso de verdade.


Tempos atrás, as telenovelas eram objetos de comentários em mesa de botequim, no ambiente de trabalho, nos transportes coletivos, nas escolas. Falava-se dos enredos, do desempenho dos atores, especulando-se sobre o desenvolvimento e conclusão das tramas. Recentemente, tentei falar sobre uma novela numa roda de amigos, porém precisei fazer uma sinopse do que já fora exibido, pois a maioria dos presentes afirmou que não assistia a novela, e o restante (alguns poucos) garantiu que assistia eventualmente, ‘por acaso’. Finalmente, a discussão se desenvolveu sobre a péssima qualidade dos programas de TV em geral. Hoje, só conheço dois ambientes em que se comentam as novelas brasileiras com ‘seriedade’: nas páginas das revistas e nos suplementos especializados e no Congresso Nacional. Neste segundo caso, quando a novela aborda temas ‘polêmicos’, alguns políticos aproveitam o embalo midiático para marcar presença nas telas de TV, e a novela ganha espaço nos telejornais.


Baixaria e propaganda


Eis alguns trechos de discursos proferidos no Congresso:




‘Gostaria de expressar junto a meus pares aqui presentes e aos cidadãos brasileiros que nos assistem pelos veículos de comunicação do Senado Federal, meu reconhecimento pela iniciativa da TV Globo de incluir o tema deficientes físicos, e visuais em particular, na próxima novela das oito, América, que estréia hoje à noite’, (senador Paulo Paim).


‘Tenho que falar de um episódio que, com certeza, teve muito mais audiência que a nossa reunião. O fato de os autores da novela [Paraíso Tropical] terem trazido para a novela o Conselho de Ética. A maneira como ali foi colocada deve estar nos causando preocupação’, (senador Eduardo Suplicy, durante reunião do Conselho de Ética do Senado).


‘A Comissão de Educação do Senado aprovou ontem um requerimento de autoria do senador Pedro Simon (PMDB-RS) convidando o escritor Sílvio de Abreu, autor da novela Belíssima, para falar aos senadores sobre as pesquisas da TV Globo que identificaram mudanças no pensamento dos brasileiros sobre questões éticas.’


‘Voltei [à Itália] cinco anos depois e já havia passado a novela Escrava Isaura. Sabiam mais do Brasil que eu porque a novela provocou, nas revistas, nos jornais, debates sobre o Brasil, sobre a escravidão no Brasil, sobre a história do Brasil. Vejam que só a novela divulgou mais o Brasil. Disseram-me que assim também na China e em quase todos os países do mundo’ (senador Gerson Camata).


‘Se houvesse alguma veracidade nisso, não estaria na novela, estaria no noticiário. Mas acabou melancolicamente como uma ficção na novela de maior audiência de todos os tempos no Brasil. É uma ficção’ (senador Renan Calheiros comentando, e exagerando sobre a audiência e o final da novela Paraíso Tropical, que exibiu uma paródia do caso que envolve Renan e a jornalista Mônica Veloso).


‘Hoje, a programação da Rede Globo difunde a cultura brasileira para espectadores de cerca de 130 diferentes países, em todos os continentes. (…) Uma das particularidades da Rede Globo, senhor presidente, é o alto percentual de programas por ela transmitidos que são realizados no país e, em especial, pela própria emissora. Seus oito mil funcionários, entre os quais quatro mil diretamente envolvidos na criação dos programas, levaram a Rede Globo à posição de maior produtora de programas próprios de televisão do mundo’, (senador Valmir Amaral, discurso sobre a comemoração dos 40 anos da Rede Globo).


‘A Comissão de Direitos Humanos (CDH) da Câmara dos Deputados anunciou ontem que obteve de cinco anunciantes de programas de TV que conteriam baixarias a promessa de que vão rever sua estratégia de propaganda. Um – Casas Bahia – não se comprometeu. Alegou que fecha pacotes anuais para todos os programas’, (‘Baixaria na TV faz empresas reverem estratégia comercial’, copyright O Estado de S. Paulo, 13/05/04).


A CDH estava empenhada numa campanha intitulada ‘Quem financia a baixaria é contra a cidadania’, que tinha como meta a valorização dos direitos humanos na televisão. Mas, aí, veio 2005, e a novela do ‘mensalão’ gerou mais audiência que a maior parte dos programas de TV. E a baixaria do Projac, por exemplo, ficou para trás, deu lugar à baixaria produzida nos bastidores da política e das redações dos noticiários, evidenciando que o maior partido de direita no Brasil é aquele que Gramsci anunciou: a imprensa, o PIG, Partido da Imprensa Golpista, como hoje a nossa é tratada.


A chanteuse, a menininha, o taxista…


Quarta-feira, 12/12, Aguinaldo Silva, usando técnica de redação de roteiro, comenta sobre o ‘moralismo’ dos telespectadores:




Liga, não, Alzirão: apenas dança!


Cena 1: casa na Barra/home theater/interior/noite


Um senhor na terceira idade, autor de novelas, aprecia na tela de sua tevê a apresentação de uma dessas chanteuses baianas sem nenhuma voz, mas de uma vitalidade física alucinante. Ela quase não canta (porque na verdade não conseguiria), apenas incentiva o seu público a fazê-lo aos gritos de ‘E aí, galera!’, enquanto dança e dança. E sobre a sua dança não resta a menor dúvida: ela simula os instantes finais por que passa uma mulher antes do mais alucinado de todos os orgasmos. Tanto que ela termina, muito apropriadamente de cócoras, soltando os gritos e gemidos de praxe.


Cena 2: casa humilde/sala/interior/noite


Diante da tela de tevê, uma menina de uns oito anos de idade vê a mesma cena, com a atenção de quem tenta apreender alguma coisa numa difícil aula de matemática. E sua intenção é mesmo de aprender – ela quer decorar passo por passo aquela dança erótica para depois reproduzi-la, talvez até diante dos olhos extasiados dos pais, na primeira oportunidade, e assim mostrar que também é do babado.


Cena 3: cartório/frente/exterior/dia


Onze horas da manhã, calor horrível. O mesmo autor de novelas na fila, à espera que o cartório abra para reconhecer a firma de um documento, o que só pode ser feito em sua presença. Diante dele, uma moça de uns 22 anos também espera. Ela veste apenas um bustiê mínimo de tecido sintético, que deixa ver os bicos túmidos e cada arfar dos seus seios magníficos. E um short que certamente ficaria arrochado até mesmo em sua irmãzinha de cinco anos.


O autor de novelas não resiste e pergunta ao cidadão que está atrás de si, e que também observa a moça:


– Como é que elas fazem pra não ter assaduras?


– Geralmente elas têm – o outro responde – e são verdadeiras feridas. Mesmo assim, não abrem mão de usar roupas justíssimas.


Cena 4: Avenidas das Américas/pista de descida/exterior/dia


No táxi, de volta pra casa, seguindo pela pista da direita, o autor de novelas se distrai com a paisagem devastada, quando de repente o carro pára, o motorista se volta pra ele e pergunta:


– Dá licença um instante?


E antes mesmo que o outro responda, desce do carro, vai até uma árvore raquítica, se encosta à pobrezinha, bota as assim chamadas ‘coisas’ pra fora e, diante das centenas de carros e pedestres que por ali transitam àquela hora, simplesmente dá uma mijada!


Enquanto o motorista satisfaz suas ‘necessidades’ atrás da árvore, o novelista se distrai olhando os passantes e seu olhar se detém numa mulher grávida: tem uns trinta anos, usa uma sandália de matar baratas nos pés, no busto uma coisa que só pode ser chamada de ‘parte de cima de um biquíni’ e, lá embaixo, um short de cujas bordas mínimas lhe salta, como se fosse um daqueles anúncios barulhentos das Casas Bahia, seu barrigão de pelo menos nove meses. Ela caminha por entre os passantes, grávida e nua, orgulhosa e altaneira, e se achando a mais sensual de todas mulheres.


Corta pro motorista mijão. Ele sacode as ‘coisas’, guarda-as, volta pro carro ainda fechando o zíper e, antes de retomar o volante e cair no trânsito de novo, apenas diz, à guisa de desculpas.


– Eu tava muito apertado!


Cena 5: casa na Barra/home theater/plana/interior/noite


O autor de novelas acompanha o capítulo de ontem de Duas Caras: mais uma vez, e de um modo que Deus sem dúvida abençoaria, Flávia Alessandra, essa rara atriz e mulher corajosa, dança diante dos olhos extasiados de Juvenal Antena. Não é só uma dança, é uma metáfora sobre o direito divino de ir e vir pertinente a cada criatura humana. Corta, em takes descontínuos, pras casas da chanteuse baiana, dos pais da menina de oito anos, da moça das assaduras, do motorista de táxi mijão e da grávida babilônica: no sacrossanto recesso dos seus lares todos eles reagem horrorizados ao ver a dança de Alzira e proclamam:


– Que coisa mais imoral gente, liga imediatamente pra Brasília e diz que isso não pode!!!


E eu lhes respondo:


– Ora, meus queridos, vamos deixar de ser hipócritas! Onde vocês pensam que estão: na Espanha franquista?…


‘Isso não pode’


Ora, meu caro autor, vamos deixar de sofismar! Ninguém está dizendo que a dança da Alzira é ‘imoral’. Mas pode, sim, dizer que é inapropriada para certa faixa etária. Nem mesmo sexo explícito é imoral; mas, nem por isso, vamos escancarar e substituir as telenovelas pelas velhas pornochanchadas das produtoras da Boca do Lixo. Apesar de que muitas telenovelas já apresentam características desse tipo de produção. Você mesmo exemplifica (Cena 2) e eu acho que quase todos nós já assistimos, na vida real, a essa lamentável cena: ‘uma menina de uns oito anos de idade’ que ‘quer decorar passo por passo daquela dança erótica para depois reproduzi-la’, seja a dança de sua personagem na novela, ou a da ‘chanteuse baiana’ que faz a dança da garrafa. Quanto aos pais que aprovam esse tipo de comportamento dos filhos, provavelmente representam as pessoas alienadas pelas novelas que caricaturam, com excesso de jocosidade, pessoas de idade avançada, empregados domésticos, índios, negros e pobres em geral. Inclusive o humor de mau gosto das novelas está muito parecido com o daquele subgênero de filme.


Além disso, se você cita a moça do ‘bustiê mínimo’, a grávida ‘nua’ e o taxista ‘mijão’ como maus exemplos, então, há uma explícita contradição em seus argumentos, pois maus exemplos não servem para amenizar os efeitos nocivos de outros maus exemplos, que, no seu entender, seriam ‘menos importantes’, visto que você convoca a deixar de ser ‘hipócrita’ quem reclamar da dança da Alzira em horário de maior audiência da TV brasileira, quando milhões de crianças ainda estão diante do televisor. Você sabe que milhares de crianças imitam a dança da garrafa e, agora, trocam a garrafa pelo cabo de vassoura. Nesse caso, pergunto: quem não compactua com os comportamentos que você exemplifica como maus estaria credenciado a ligar para Brasília e dizer ‘isso não pode’?


Jabaculê e pão para rabanada


Números ‘gordos’ da audiência de um programa ruim não indicam ‘sucesso’ propriamente dito. A audiência é apenas um dos componentes do sucesso, e o sucesso, para ser realmente considerado um acontecimento amplamente exitoso, requer boa qualidade, em que sejam considerados os aspectos morais e intelectuais da obra.


Quarenta ou cinqüenta pontos de audiência servem para impressionar os anunciantes. Mas não deveriam. E creio que esses anunciantes já devem ter percebido que a ‘gordura’ do Ipobe, comemorada por Agnaldo Silva, tem muito mais colesterol ‘ruim’, aquele que causa entupimento das artérias, do que o ‘bom’, exatamente aquele colesterol que ajuda a evitar este processo. Os 40 ou 50 pontos que o Ibope registra na audiência de certas novelas são formados por telespectadores que têm pouco dinheiro para comprar a maior parte dos produtos anunciados nos intervalos das novelas e até inseridos nos enredos e cenários, na condição de merchandising.


O próprio Aguinaldo Silva, em entrevista para a coluna ‘Outro Canal’, da Folha de S. Paulo (4/10/2007), comentou a baixa audiência dos primeiros capítulos de Duas Caras, novela de sua autoria, com a seguinte justificativa: ‘O problema não é com a novela, é com a televisão. Numa terça-feira, o total de ligados em São Paulo foi de 64%, ou seja, 36% dos televisores estavam desligados. As pessoas estão comprando TVs de plasma para deixarem desligadas ou para verem filmes. (…) E ainda tem o Messenger e o Orkut. Agora até as criancinhas estão viciadas em Orkut. O Orkut virou novela, as pessoas escrevem suas próprias histórias.’


Com essa declaração, Aguinaldo Silva, de certa forma, revela que a audiência que realmente interessa aos anunciantes estaria migrando para outras mídias. Essa perda é formada por aqueles que compram carros, apartamentos em condomínios de luxo, computadores, movimentam contas bancárias, assinam TV a cabo, alugam filmes, freqüentam shoppings, ‘turistam’ pelo mundo afora. Daí se pode concluir que, do ponto de vista comercial, a queda de audiência é muito mais significativa que a mera indicação nominal dos pontos perdidos, pois estes se referem aos verdadeiros consumidores, aqueles que estão abandonando a telenovela e aderindo ao Messenger e ao Orkut, conforme se queixa Aguinaldo Silva.


Resta, portanto, anunciar milho de pipoca, refrigerante ‘mendigão’ e agora, no período natalino, rolar muito jabaculê para se fazer merchandising dos sindicatos de panificadores nos telejornais, informando que a venda de pão para rabanada cresceu 100% em relação ao Natal do ano passado.


Mas… quem assiste às telenovelas hoje em dia?


– Ei, psit, ô da poltrona, quem é você?


– Meu nome é Zé Mané, mas pode me chamar de Homer Simpson.

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Escritor, Rio de Janeiro, RJ