No verão de 1978, parei em frente a uma das muitas lojas brasileiras que existiam na Rua 46, em Nova York, onde eu morava havia quase um ano. Encontrei um exemplar de O Globo exposto na vitrine. O título de maior destaque da primeira página informava que Salomão Hayala havia sido assassinado.
Em casa, informei à minha mulher:
– Mataram o Salomão Hayala.
– Salomão quem?
Era a resposta que eu temia ouvir. Eu mesmo não tinha a menor idéia de quem Hayala havia sido, mas faltava coragem para admitir. Esperava que em casa eu acabasse sendo informado sobre um artista emergente ou uma nova liderança política que me havia passado despercebida durante todos aqueles meses.
Demorei mais alguns dias para entender que o finado era meramente um produto da imaginação de Janete Clair – e justamente por isso é que despertava tanto interesse dos brasileiros. Dez anos depois, quando ouvi falar que mataram Odete Roitman, já tinha aprendido a lição. Procurei saber quem estava escrevendo a novela das oito.
Banalidade hegemônica
Na noite da última sexta-feira (25/6), estava no auditório de belo cinema São Luiz, em Fortaleza, palco da 14a edição do Cine Ceará. Faltavam poucos minutos para o início da exibição de Lost Zweig, o filme de Silvio Back sobre os últimos dias de vida do célebre autor de Brasil, o país do futuro. Havia pouca gente no auditório. Isso é incomum para este festival e está em desacordo com o interesse que a circunstância da morte de Stefan Zweig é capaz de despertar. Silvio veio sentar-se ao meu lado. Disse: ‘Autorizei que parassem a projeção para, quando chegar a hora, os apresentadores informarem à platéia quem matou Lineu’.
Disse ‘quando chegar a hora’ com a solenidade de quem anuncia os grandes momentos, bons ou maus, que mudam o rumo de uma vida. Para um diretor de cinema, pedir que interrompam seu filme no meio de um festival tem a carga de um gesto extremo. Entendi onde estavam as pessoas que em qualquer outro dia teriam lotado o São Luiz. Percebi ainda na morte de quem a população estava interessada.
O que acontecia ali era um bom exemplo da capacidade de massificação da televisão, mas de modo algum um fenômeno tipicamente brasileiro. Poucas semanas antes, no dia 6 de maio, os Estados Unidos também pararam para ver o último dos 236 episódios de Friends. A população americana não queria saber quem tinha matado quem, mas se Ross e Rachel iam ficar juntos ou não.
Nos EUA, Friends ia ao ar na NBC – e não há nada de intrinsecamente ruim em se tirar proveito da audiência massiva que uma rede aberta pode proporcionar. Mas é estranha a sensação de estar do lado de fora do universo paralelo que ela cria. Um evento só existe se aparece na TV – e assim é também com as pessoas. O Lineu forjado pela televisão é capaz de despertar mais compaixão que milhares de outros Lineus da vida real, que são mortos todos os dias mas que não ganham citação nos telejornais locais. A emoção pelo destino de Ross e Rachel é bem mais forte que a preocupação pelo futuro dos nossos vizinhos.
A ironia que existia por trás da célebre afirmação de Andy Warhol sobre os tais 15 minutos de fama há muito se perdeu. Isso aconteceu porque tanto a frase quanto a atitude do artista foram devidamente absorvidas e transformadas pela banalidade hegemônica. Nelson Rodrigues falava sobre essa hegemonia. Disse que os idiotas, quando se deram conta de que eram maioria, saíram da obscuridade e tomaram imediatamente todos os postos do poder.
Assassinato midiático
Pensei nisso há alguns anos, quando vi pela primeira vez a revista Caras. No início, tive certeza que se tratava de uma paródia genial. Depois de ver a revista por muitas semanas, e logo em seguida seus inúmeros clones, admiti que tudo aquilo era a sério. Não só a sério como um grande sucesso editorial.
Acho que até hoje não estou completamente convencido disso. Folheio essas revistas e tenho a sensação que algum dia alguém vai se revelar, como um pequeno demônio bem-humorado, e dizer: ‘Vejam em que grande piada vocês caíram durante tanto tempo, como todos vocês podem ser idiotizados com rapidez e agir pelo resto da vida como perfeitos idiotas’.
Alguns dias após o final de Celebridade, discute-se ainda se os espectadores estavam mais interessados no caráter policial de seu desfecho ou na relação do autor com o comportamento ético de seus personagens. São personagens que só poderiam existir no mesmo contexto em que existe Fama, a revista clonada da Caras, ou a percepção da fama como um fim em si. O denominador comum é a ausência de percepção do patético que há no comportamento dos pobre-coitados que não têm valores em que acreditar, causas pelas quais lutar, e que servem de instrumentos para a brutalização dos sentimentos que a mídia encoraja neles, em troca de pouco menos de 30 dinheiros.
Há um comportamento gerado pelos valores que as Famas e as Caras disseminam e que está em toda parte, desde os templos de consumo até as atrações mais populares. No homônimo de Fama na TV, um programa de calouros padronizado, os postulantes ao estrelato não pensam em criar, em passar algum recado pessoal para os que estão do outro lado, mas em serem tão pasteurizados quanto a produção possa exigir, em deixarem para trás toda a sua capacidade de agir como seres dotados de inteligência. Todos os reality shows se parecem, vendem exatamente a mesma coisa, tratam o ser humano com indignidade porque ser indigno está entranhado na herança cultural com a qual estabelecem os seus princípios – é a sua única possibilidade de construção.
Stefan Zweig, o do filme de Silvio Back, matou-se porque se viu premido a subverter os seus valores, a abandonar as causas por que lutava. Há os que se matam por menos. Os que estudam as leis religiosas preocupam-se com o fato de que não se importar com coisas assim pode ser considerado uma bênção. Entre a angústia de Zweig e o deslumbre de quem tem seu banheiro fotografado por Caras, de que lado está a felicidade?
A corrida pelos 15 minutos de Warhol transforma a todos em palhaços, em migalhas do que há de pior na espécie humana. O desgraçado sobrevive unicamente porque não se reconhece como tal. Não tem capacidade de autocrítica porque muitos ao seu redor abraçaram os mesmos valores, foram igualmente vítimas do assassinato midiático, igualmente transformados em parasitas. Acham normal ser um ex-BBB e talvez até anseiem um pouco por isso.
Não tenho certeza se Celebridade falava sobre essas questões. Se não falava, perdeu uma boa oportunidade de fazê-lo.