Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Telenovelas: a ficção atrapalha a realidade?

As telenovelas brasileiras foram o tema do programa Observatório da Imprensa na TV exibido na terça-feira (17/4). Com poder de influenciar e repercutir o comportamento da sociedade – e movimentar milhões de reais em publicidade e produção –, atualmente são exibidos na TV brasileira 14 folhetins eletrônicos que equivalem a 10 horas de programação diária, de segunda a sábado. Toda essa incidência suscita questionamentos sobre o significado dessas produções para o país: há excesso de telenovelas na programação da TV? Elas ajudam a sociedade a compreender melhor o mundo? Contribuem para o desenvolvimento da sociedade?


No editorial de abertura do programa [ver abaixo], Alberto Dines comentou as duas grandes manchetes da mídia naquele dia: o assassinato de 32 pessoas numa universidade americana do estado da Virginia e a troca de tiros no Morro da Mineira, região central do Rio, que deixou pelo menos 19 mortes e muitos feridos. Para Dines, o terrorismo na universidade e a guerrilha urbana assustam porque fazem perceber que a culpa não é só dos matadores. Assinalou que, nesses casos, a ficção parece ser uma saída para fugir da realidade. E as telenovelas são os produtos mais atraentes na prateleira.


Participaram do programa, em São Paulo, Mauro Alencar, pesquisador da USP e consultor da Rede Globo e a crítica de TV do Leila Reis, titular da coluna ‘Sintonia fina’ do Estado de S.Paulo; no estúdio do Rio estava Marcílio Moraes, autor de telenovelas (é dele Vidas opostas, em exibição na Rede Record) e presidente da Associação Brasileira de Roteiristas Profissionais de TV.


‘O telespectador rejeitaria’


A telenovela começou no Brasil na década de 1950, ainda durante êxito que desfrutava no rádio. Um dos primeiros sucessos de público foi O direito de nascer, tanto em sua versão radiofônica como na televisiva. De lá para cá a TV brasileira produzir algo como 600 telenovelas. Durante os anos 1970 e 1980, muitas delas eram baseadas em romances da nossa literatura. Entre as produções que hoje estão no ar, apenas uma segue essa linha.


Para conseguir mais audiência, algumas novelas têm apelado para cenas de violência e de sexo além dos limites do razoável. O que nem sempre é garantia de sucesso, já que a falta de criatividade e a repetição de enredos também cansa a quem está assistindo. Principalmente quando se compara o que está sendo produzido atualmente com antigos clássicos da teledramaturgia, como Beto Rockfeller, de Bráulio Pedroso, e os dramas de Dias Gomes. Algumas produções, como A escrava Isaura, ganharam o mundo numa trilha de sucesso. A história de Bernardo Guimarães já foi vendida para mais de 100 países, e atualmente tem uma nova versão exibida pela Rede Record.


A crítica torce no nariz para as novelas ora em cartaz, mas já elogiou produções como Roque Santeiro (1985), de Dias Gomes, e Dancin´ Days (1978), de Gilberto Braga. No que respeita ao envolvimento do público, é raro conseguir a unanimidade de O astro (1977-78), de Janete Clair, cujo desenrolar e, sobretudo, os últimos capítulos, praticamente pararam o país.


As novelas se tornaram uma grande indústria que emprega milhares de profissionais. Um único capítulo pode custar até 150 mil reais para ser produzido, mas o retorno costuma girar em torno de milhões. O diretor de mídia da agência DPZ, Luiz Fernando Novaes, explicou em entrevista gravada que os preços de veiculação de publicidade nos intervalos das novelas estão relacionados à audiência, já que os anunciantes querem falar com o maior número de pessoas. Cada ponto de audiência corresponde a um número determinado de espectadores, e cada um desses pontos registrados a mais pelo Ibope alavanca o valor a ser pago pelo anúncio. ‘Um comercial de 30 segundos na novela das oito da Globo, que é a de maior audiência, custa na tabela pouco mais de 300 mil reais’, disse o publicitário.


A Globo é a líder no mercado de telenovelas, mas outras emissoras já entraram ou ainda permanecem na disputa por uma fatia do bolo. É o caso da Record, que recentemente investiu pesado e garantiu boa audiência com Vidas opostas. E a TV Cultura, de São Paulo, decidiu apostar numa alternativa e vai estrear em julho um programa dirigido por Antunes Filho, que levará peças de teatro para televisão.


Dines abriu a discussão e citou Gilberto Braga, dizendo que há coisas que pertencem à realidade, mas que não podem ser colocadas numa telenovela porque pareceriam inverossímeis. Em seguida fez alusão ao estudante que matou 32 pessoas na Virginia, e perguntou para Marcílio Moraes se isso seria crível numa ficção.


O autor de Vidas opostas disse que não, porque o comprometimento da novela é com a verossimilhança e não com a realidade. E acrescentou que seria difícil preparar a população para algo tão brutal. ‘O telespectador rejeitaria uma situação tão no limite, tão violenta’, disse. ‘Para uma novela, seria um assunto demasiado pesado.’ Moraes aproveitou para responder às críticas de que sua novela é muito violenta. Ele negou e disse que sua ficção é muito menos agressiva que a realidade, já que o roteiro também mostra uma dimensão humana dos personagens.


Espaço ocupado


Dines mencionou duas matérias publicadas no fim de semana, na Folha de S.Paulo e no Estadão, que comentavam telenovelas [ver aqui http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=429ASP001] – uma delas com o título ‘Deixem as novelas em paz’ – e perguntou a Leila Reis: ‘Você acha que temos que deixar as novelas em paz?’


A jornalista, também presidente da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), afirmou que elas é que não vão nos deixar em paz. ‘Não se pode desconsiderar que [as novelas] são o produto mais bem-acabado que a televisão faz’, afirmou. Explicou que a Globo aperfeiçoou esse produto e as outras emissoras seguiram o exemplo. ‘Não se deve olhar com preconceito. Novela é um entretenimento e não deve ser nada mais do que isso’ – mas ressalvou que esse entretenimento não pode vir carregado de preconceitos e atitudes não-cidadãs.


Leila comentou ainda que de um tempo para cá as novelas se sentiram na obrigação de retratar a realidade: ‘O Manoel Carlos [autor de Páginas da vida] reproduziu na novela o incêndio do ônibus que aconteceu no Rio, provocado por bandidos’, lembrou.


Alberto Dines concordou que as novelas são entretenimento, mas argumentou que elas ocupam um espaço que poderia ser destinado à discussão da realidade. E questionou se a apatia de que falam os políticos e cientistas políticos não seria fruto desse ‘hipnotismo’: ‘Eles não estão sonhando, mas estão em outra realidade, e a nossa está aqui, todos os dias’, disse. E pediu a Mauro Alencar uma avaliação.


Alencar, autor do livro A Hollywood brasileira: panorama da telenovela no Brasil, afirmou que a novela sacode o Brasil e a América Latina. Defendeu sua posição com o exemplo da novela Mulheres apaixonadas, que fez com que o Estatuto do Idoso fosse discutido e finalmente liberado dos trâmites legislativos. ‘Esse papel [da novela] vai além do entretenimento’, disse.


Terreno fértil


Na abertura do segundo bloco do programa, Dines dirigiu-se a Marcílio Moraes e provocou: ‘Vou falar do seu ganha-pão, mas, insisto: será que não tem novelas demais?’. E argumentou: ‘Deveríamos ter mais tempo para discutir o Estatuto do Idoso, mas num programa, numa reportagem, num documentário’. Segundo ele, com a falta desses produtos ‘engessamos a criatividade televisiva’. Comentou que não era um homem de TV, mas observava que, com o excesso de novelas, perdiam-se boas oportunidades de debate.


Moraes afirmou que tinha uma posição crítica com relação a isso, como autor e também como presidente de uma associação de roteiristas. E concordou que há novelas demais. Comentou que o modelo que se estabeleceu após a década de 1970 criou um tipo de programação com muitas novelas, e isso engessava o restante da grade. Segundo ele, haverá uma solução natural quando ocorrer o esgotamento do formato.


Dines disse que estava assustado com a atual apatia em relação aos assuntos graves que a imprensa levanta, em geral rapidamente esquecidos também em função das novelas, segundo ele ‘máquinas de triturar consciência’. E questionou Leila Reis sobre o assunto.


A colunista do Estadão discordou e disse que não é a novela a responsável por essa apatia. Para Leila, elas contam a mesma história desde a década de 1960, mas sempre de forma diferente. ‘A maneira como se conta a piada é onde está a graça’, comparou. E citou casos que, para ela, eram mais depreciativos na TV – como os programas ‘policialescos’ que utilizavam-se de histórias verídicas para explorar a perversidade da natureza humana. ‘Esses realmente atentavam contra a cidadania’, disse.


Dines perguntou a Mauro Alencar se não seria possível que os ‘homens de TV’ se reunissem e criassem uma nova fórmula de teledramaturgia tão fascinante quanto a telenovela. Alencar foi taxativo: ‘Sinceramente, não há’. Disse que a novela é uma tribuna bem particular do latino-americano e que é aí onde os temas de interesse são debatidos. ‘Até a Inglaterra está se rendendo a produções como Beth, a feia‘, um grande sucesso colombiano. Disse ainda que, com o sucesso de A escrava Isaura, Israel, Índia e a China agora também são produtores de novela. Citou o caso de Cuba, que passou a produzir novelas em ambientes abertos a partir do exemplo de Renascer. Para ele, esse gênero encontrou um terreno muito fértil na América Latina e é graças a isso que a exportação das produções brasileira é tão significativa.


Marcos regulatórios


No terceiro bloco vieram as participações de telespectadores do Observatório. De São Paulo, foi perguntado a Marcílio Moraes se com tanto merchandising a telenovela não deixava de ser um produto cultural para se tornar um simples produto comercial. Moraes disse que, por definição, ela é um produto comercial mesmo, mas que por isso não deixa de ser também cultural, e que pode levar as pessoas a pensar. Lembrou Umberto Eco ao dizer que a novela tem uma função conciliatória: ‘As pessoas ficam esperando que a história dê certo. Caso de incesto, por exemplo, já sei que não vai funcionar. O folhetim tem que ter esperança, e é ai que entra o merchandising’.


Também de São Paulo, veio a pergunta: ‘Antigamente as obras literárias rendiam uma novela inteira, agora só rendem uma minissérie. Por que isso?’. Mauro Alencar contou que ainda hoje o romance rende uma novela inteira: deu os exemplos de Paixões proibidas, exibida pela Band; A escrava Isaura, na Record; e Força de um desejo, na Globo. E ponderou que, por seu formato, a minissérie estava mais apta para abarcar um romance.


Do Rio, um telespectador perguntou a Dines: ‘No âmbito de uma lei geral de comunicação de massa não seria possível regulamentar o que a Constituição já obriga, [isto é] dar mais espaço à produção independente e à produção jornalística regional? Se fosse assim, as emissoras não teriam menos espaço para colocar tanta novela no ar?’


Para Dines, o governo tem que criar marcos regulatórios sim, como a classificação indicativa, mas que era preciso tomar cuidado, senão daqui a pouco o governo controlaria tudo. ‘A indústria de entretenimento no Brasil tem condições de usar sua imaginação para criar alternativas’, disse. ‘Um dia isso [o excesso de novelas] vai desabar, então é melhor que o próprio mercado comece a discutir.’


Jornalismo e teledramaturgia


O último bloco do programa foi dedicado aos comentários finais dos participantes. Mauro Alencar garantiu que as novelas são importantes, pois levam as questões humanas para a ficção e as devolve de uma outra maneira, para serem pensadas pela audiência. Leila Reis reafirmou as opiniões que havia emitido e disse que há, sim, muitas novelas, e que era preciso discussões relevantes na TV, mas não como as que em geral estão presentes nos programas vespertinos. Marcílio Moraes afirmou que faltam debates e outros tipos de programa na TV brasileira.


Dines mencionou o exemplo da Argentina, que assiste a debates políticos no horário nobre, enquanto os brasileiros vêem novela: ‘E eles não são melhores do que nós’, disse. Por fim, Dines perguntou a Moraes por que a Rede Record não investe mais em telejornalismo, além das telenovelas. O autor de Vidas opostas comentou que não poderia falar pela direção da emissora, mas afirmou que existe investimento em jornalismo sim, e que a emissora tem crescido como um todo, não apenas nas novelas.


A seguir, cenas dos próximos capítulos.


***


A ficção nossa de cada dia


Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 413, exibido em 17/4/2007


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


De quem é a culpa? Já se sabe o nome do estudante que assassinou 32 pessoas na politécnica da Virginia. Mas por quê? Por que esta atração por escolas e universidades? Como explicar a preferência dos terroristas americanos pelo mês de abril? E a nossa guerra urbana? Na batalha campal de hoje morreram 13 no Catumbi, região central do Rio. Qual a violência que interessa mais, o que preocupa mais? O que assusta mais é perceber que a culpa não é apenas dos assassinos.


A realidade, às vezes, é tão absurda que em certas circunstâncias parece mais fácil recorrer à ficção. E em matéria de ficção o Brasil não tem do que se queixar. Nossa televisão apresenta 14 telenovelas por dia, mais de dez horas. De segunda a sábado, nos melhores horários.


Tudo começou com o folhetim em capítulos, entregue de porta em porta ou encartado em jornais. Depois veio a rádio novela; a telenovela é o folhetim de última geração que magnetiza as audiências em todas as partes do mundo, em todas as línguas, em todas as classes sociais.


A telenovela hoje é uma indústria que emprega atores e atrizes, técnicos, argumentistas e roteiristas. A telenovela dá suporte ao teatro, ao cinema. Graças a ela os anunciantes dispõem de um poderoso veículo publicitário para inserir mensagens comerciais ostensivas ou disfarçadas. Aparentemente todos saem ganhando com as telenovelas.


E o telespectador? Será que o conteúdo das telenovelas ajuda a sociedade a desenvolver-se culturalmente? Além de hipnotizarem as audiências, pode-se dizer que as telenovelas são educativas, elas ajudam a compreender o mundo, contribuem para melhorar a nossa humanidade? Aguarde os próximos capítulos.