No domingo (13/2) de manhã, vi na TV um encontro aparentemente inusitado: FHC foi um dos convidados de Regina Casé no seu programa Esquenta, da Rede Globo. É uma espécie de roda de samba capitaneada por Arlindo Cruz e pela própria Regina, com convidados do mundo da música, da TV e, agora sabemos, também da política. A seguir, reconto, recuperando da memória, o que vi e ouvi naquela manhã.
O programa começa com a apresentação dos convidados através da música tema: ‘Bateria arrebenta, todo mundo comenta, e com Fernando Henrique o programa, domingo, esquenta…’. Alguma coisa soa fora da ordem quando uma liderança do tucanato paulista se apresenta em termos tão populares. Logo naquele momento, aquela ‘visita’ começou a fazer sentido para mim e o estranhamento foi se transformando na constatação de uma manobra política muito engenhosa.
Todos sabemos que FHC ficou muito mal na fita depois do seu governo, ainda mais porque foi sucedido pelo presidente mais popular da história brasileira. Tanto que, na campanha presidencial de 2010, houve uma disputa interna no PSDB a respeito da presença ou ausência dele no horário eleitoral gratuito. Na verdade, outros tucanos de São Paulo também tem dificuldade de construir uma imagem menos burocrática ou acadêmica e esforços no sentido de combater esse problema já foram feitos: Alckmin virou ‘Geraldo’ na sua última campanha e José Serra tentou ser chamado de ‘Zé’.
‘Vou apertar, mas não vou acender agora’
No caso de FHC, é o principal legado do PSDB que pode estar sendo objeto de reconstrução simbólica através de iniciativas como as do programa. Regina Casé se presta muito bem a esse papel, por ser frequentadora contumaz de comunidades da periferia de grandes cidades brasileiras, especialmente o Rio de Janeiro. Essa proximidade se estende aos músicos, bailarinos e crianças que frequentam seu programa e que ela conhece pelo nome. Analisei, em outro texto, o caráter estratégico que não só os seus programas, mas todos os do Núcleo Guel Arraes, tem para a Globo, na medida em que contribuem para a reconstrução da imagem da própria emissora, abalada por sua associação ao regime militar e por sua intervenção na política nacional desde então.
Ao chamar ao palco o ex-presidente, Regina pede à plateia: ‘Vamos aplaudir muito‘, como que prevendo uma certa falta de entusiasmo. Ao longo da entrevista, ficamos sabendo que FHC é defensor da descriminalização do usuário de drogas, tema aparentemente caro aos demais convidados, entre eles Marcelo D2, que já foi líder de uma banda chamada Planet Hemp (em inglês, hemp significa uma fibra produzida pela maconha). As músicas executadas também evocam a temática: ‘Vou apertar, mas não vou acender agora’, ‘Meu vizinho jogou uma semente no meu quintal’.
O programa requenta
FHC esclarece que não se trata de legalizar o consumo de drogas, mas de enfrentar um tabu que tem causado muitos problemas à sociedade brasileira, como o fortalecimento de organizações criminosas. Regina elogia sua coragem: ‘Poucas pessoas ousam associar sua imagem a um tema como esse.’ Tema, aliás, que tem a vantagem de ser liberal, no bom sentido da palavra (de defesa das liberdades individuais), e de ser distante das disputas que efetivamente dividem o campo político brasileiro (relativas à partilha de poderes e recursos entre o Estado, o capital e a sociedade civil organizada). É mais difícil localizar uma posição ideológica a partir de um tema como esse do que a partir da defesa ou combate à regulação dos meios de comunicação de massa, por exemplo. Cria-se uma espécie de limbo ideológico onde figuras tão diferentes como Regina e FHC se encontram à vontade. Ela mesma antevê o tipo de crítica que essa proximidade pode suscitar: ‘Tem gente que diz, `Ah, você recebeu Lula, agora vai receber FHC, depois Dilma, que já foi convidada… e fica bem com um, fica bem com o outro…´ Eu digo que eu sou uma pessoa que gosta de olhar pra frente, eu só quero saber do pode dar certo e esse homem fez coisas boas.’
Encerrada a entrevista, FHC recebe o abraço de uma linda criança e eu fico com a sensação de que a ‘bateria arrebenta, todo mundo comenta’ e o programa da Globo requenta – no caso, a imagem de FHC.
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Professora doutora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco, autora de Nova retórica do capital – A publicidade brasileira em tempos neoliberais (Edusp,2010)