‘O nosso trabalho na TF1 é ajudar a Coca-Cola a vender seu produto. Ora, para que uma mensagem publicitária seja eficaz é preciso que o cérebro do telespectador esteja disponível. Nossos programas têm por objetivo torná-lo disponível. O que vendemos à Coca-Cola é tempo de cérebro humano disponível.’ (Patrick Le Lay, PDG do canal TF1 aos críticos franceses e estrangeiros que comentavam o baixo nível dos programas do canal, em 2004)
A frase do presidente-diretor-geral do canal TF1, que detém o maior ibope da França,escandalizou muitos intelectuais. Le Lay admitia cinicamente o que todo mundo sabe. Para a TV comercial em geral, o que conta são os altos contratos de publicidade. Essa frase já faz parte da história da comunicação na França, onde a televisão comercial pode ser tão imbecilizante quanto a de Silvio Berlusconi ou a do Brasil. Aqui como aí, depois de um dia de trabalho exaustivo muitas pessoas ligam a televisão para ‘esvaziar a cabeça’.
O sociólogo Pierre Bourdieu acusava a TV de impor o assunto, o tempo irrisório, e de ter interesses econômicos invisíveis, muitas vezes inconfessáveis. Tudo isso faz da televisão, segundo ele, um formidável instrumento de manutenção da ordem simbólica. E de todos os telespectadores tele-servos de uma servidão voluntária nem sempre consciente.
Para estudar esse ser passivo chamado telespectador, o documentarista Daniel Volson resolveu enfrentar um paradoxo. Ganhando a vida na TV, ele disse um dia: ‘Desliguem a televisão’. Sua injunção foi obedecida por algumas famílias durante um mês. Volson acompanhou essas pessoas de diferentes classes de uma pequena cidade que toparam o desafio de viver 30 dias sem TV. O resultado da experiência é o documentário Privés de télé, mostrado em cinco episódios no canal franco-alemão Arte, de segunda a sexta-feira passada (23/9).
Entre dois programas
As famílias voluntárias resolveram entrar no jogo do documentarista sem ganhar nada. Ao contrário, perderam por um mês o direito a ver televisão. O documentário não tinha a pretensão de ser científico, queria apenas discutir o papel da televisão na vida das famílias e perguntar, entre outras coisas, como se reorganiza a vida das pessoas sem a onipresente TV. E se é possível proteger as crianças das imagens, muitas vezes violentas, dos telejornais.
Os aparelhos foram ciosamente retirados de todas as casas, como se vê no início do documentário. Não sobrou nenhum. Só um grande silêncio nas salas e nos quartos. E o silêncio deu lugar ao reencontro entre pais e filhos, a momentos de descontração e conversa em torno da mesa de jantar. Todos ouviram mais música, leram mais, redescobriram os jogos em grupo. As crianças e os jovens passaram a fazer os deveres de casa com mais atenção, muitos melhoraram as notas na escola.
Uma adolescente contou que os melhores alunos de sua sala são dois colegas que não têm televisão em casa. São os que mais leram livros entre todos os alunos. ‘São os intelectuais’, disse a garota.
O francês vê em média três horas de televisão por dia. As crianças, como os adultos entrevistados por Volson, diziam sentir muita falta de seus seriados, programas prediletos e, pasmem, da publicidade. Entre os dependentes da TV há os que têm um fraco pela publicidade. O espaço publicitário não é visto como um estorvo, uma perda de tempo, mas como uma linguagem de comunicação, muito mais do que um intervalo entre dois programas (na França os programas não são interrompidos para anúncios).
Suspiros de alívio
O documentarista discutiu com alguns casais a possibilidade de criar os filhos longe da televisão para protegê-los de imagens potencialmente traumáticas. As impressionantes imagens do tsunami ou do furacão que devastou Nova Orleans podem marcar profundamente uma criança. Mas um mundo sem TV é uma utopia de alguns intelectuais, que têm verdadeira aversão a esse eletrodoméstico criticado, entre outras coisas, pelo poder de controle das massas. No entanto, a força das imagens também pode se voltar contra os poderosos. Há pouco tempo vimos como as imagens dos corpos boiando nas ruas de Nova Orleans afetaram drasticamente os índices de popularidade do presidente George W. Bush.
Recentemente, o jornal Libération num editorial assinado comentou a decisão das autoridades israelenses de abandonar Gaza, sem destruir as sinagogas, ao contrário de todas as casas postas abaixo pelo exército de Israel antes de se retirar. O objetivo seria utilizar como propaganda as imagens de sinagogas sendo destruídas por centenas de palestinos. Na guerra da comunicação, paralela à verdadeira guerra, essas imagens valem mais do que milhares de palavras.
O documentário Privés de télé não pretendeu apresentar nenhuma verdade peremptória sobre essa mídia que se impôs de tal forma ao cotidiano que hoje parece impossível viver sem ela. Um mês sem televisão foi vivido como experiência-limite. A maioria dos participantes não podia conceber mais de um mês sem TV. Os dias foram contados como numa prisão. No 30º dia, todos respiraram aliviados quando os aparelhos de TV chegaram nas vans da produção.
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Jornalista