Enquanto a intelectualidade discute se é ou não fascista o filme Tropa de Elite, de José Padilha – o ‘inédito’ mais visto em todos os tempos, com um número incalculável de cópias piratas circulando em DVD e uma platéia que já se estima na casa dos milhões –, circulam informações de que as duas maiores redes de TV, Globo e Record, estariam disputando os direitos da obra, para lançá-la no formato de seriado.
O fascínio das escopetas abrindo buracos em traficantes e da tortura aplicada a seus parentes, conhecidos ou meros circunstantes, embora mórbido e regressivo, é indiscutível sobre a massa espectadora e não fica insensível a ele a indústria do entretenimento, que se ufana de ‘dar ao público o que ele quer’. Se é por tiro, porrada e sangue a demanda do momento, agora na versão do Batalhão de Operações Especiais da PM do Rio de Janeiro, então é isso que a TV quer mostrar.
Qual será o efeito, entretanto, da conversão do polêmico filme de ação, de uma peça única de 100 minutos, numa seqüência de episódios de 60 minutos, e de sua transposição das restritas mídias cinematográficas para a tela televisiva, universal? Que conteúdo será levado ao público de todo o país e que reações provocará nele?
Se considerados os aplausos e os gritos de incentivo aos fuzileiros do BOPE, relatados nas exibições do filme em festival de cinema do Rio de Janeiro e na sala de Jundiaí (SP) onde estreou solitariamente, numa tentativa de obter a vaga do Brasil para a disputa do Oscar, as perspectivas são preocupantes. Mais de 180 milhões de brasileiros serão convidados a vibrar com as peripécias do capitão Nascimento e seus colegas de farda negra, na sua proclamada ‘guerra’ contra a marginália dos morros cariocas e contra a PM corrupta e ineficaz de farda azul.
Linha de tiro
Vibrar, sim, e não pouco. Isso porque, independente de todas as questões sociais e políticas envolvidas no problema do tráfico de drogas e de seu combate, que Tropa de Elite não deixa de retratar com bastante clareza, sua narrativa é a de um clássico filme de ação, que opõe heróis e vilões e impele naturalmente o espectador a posicionar-se ao lado dos primeiros. Como a história é contada na perspectiva dos policiais do BOPE, é inevitável que eles ganhem a aura de ‘mocinhos’, a despeito de sua ética torta e de sua grosseira compreensão do fenômeno social em que estão metidos.
É preciso um considerável nível de informação e de juízo crítico para o espectador concluir que, no mundo de barbárie retratado em Tropa de Elite, simplesmente não existe o ‘lado do bem’. É bem mais sedutor e cômodo deixar-se levar pela idéia de que chumbo quente e covas frias podem resolver o flagelo da criminalidade. Como demonstram, aliás, a boa audiência dos telejornais policialescos e a eleição de tantos candidatos que se apresentam como demiurgos, a cada dois anos.
Teremos, então, doses semanais dessa ideologia de extermínio, inoculada por um eventual seriado Tropa de Elite nos corações e mentes dos telespectadores? Vibrará o público, satisfeito, ao ver os artilheiros do BOPE aterrorizarem regularmente as comunidades cariocas, e deixarem atrás de si o habitual rastro de corpos destroçados ou torturados? Qual será o significado político disso, se o seriado repetir, ainda que minimamente, o avassalador sucesso do filme? Que impacto terá sobre as políticas de segurança pública e de proteção dos direitos humanos?
A televisão terá de usar o máximo de bom senso, e toda a sua capacidade de anodizar conteúdos agressivos, se não quiser instituir o slogan ‘Sou da Guerra’ em substituição ao desacreditado ‘Sou da Paz’. Pode-se confiar nisso, em princípio, porque os dirigentes e profissionais de TV têm, em sua maioria, uma boa noção dos perigos potenciais do instrumento que operam, se ele for usado irresponsavelmente. O caso de Cidade de Deus, onde a mesma problemática de Tropa de Elite foi tratada na perspectiva dos traficantes de droga, demonstra que é possível extrair um subproduto televisivo sem carregar nas tintas da violência e da regressão social. O seriado Cidade dos Homens ofereceu um painel realista da vida cotidiana nas favelas cariocas, tratando da coexistência de crime e virtude sem cair na tentação do faroeste urbano.
Sim, mas desta vez não haverá os adoráveis Acerola e Laranjinha, apenas os atormentados policiais da farda negra e os infelizes em sua linha de tiro. Como será possível extrair de sua mentalidade autoritária, maniqueísta, a sensibilidade e a complexidade que uma abordagem progressista da questão social exige?
Marcos progressivos
No filme, o capitão Nascimento angustia-se com a dor de uma mãe, cujo filho é morto por traficantes por ter delatado alguns deles, sob tortura do BOPE. Mas o próprio capitão apressa-se em se dizer incomodado com a culpa que sente, como se ela fosse um estorvo ao bom desempenho de seu ofício.
Se o seriado de TV investir nisso, nos dilemas morais do policial em confronto com o crime, em vez da simples e hollywoodiana troca de tiros com pancadaria geral, provavelmente não fará sucesso. E se mandar bala sem refletir muito sobre o sentido desse gatilho solto, em busca do bom Ibope, certamente atingirá alvos sensíveis à democracia e à justiça social.
É um dilema considerável, mas convém que a TV tenha a coragem de enfrentá-lo. Desde a explosão de Cidade de Deus, auspiciosamente, o tema da periferia e da representação realista de sua complexidade vem motivando as emissoras a abordá-lo, com produções de resultados irregulares, mas validadas pela boa intenção.
Os seriados A Turma do Gueto, Cidade dos Homens e Antonia, o documentário Falcão – Os Meninos do Tráfico, as reportagens de Central da Periferia e a novela Vidas Opostas foram marcos progressivos na aproximação da cultura televisiva, eminentemente dominada pelos valores da ‘elite branca’, ao mundo das favelas e subúrbios, onde presidem outros valores, ocultos por uma ainda enorme invisibilidade. O Roda Viva com o rapper paulistano Mano Brown (segunda, 24/9) e a novela Duas Caras, lançada nesta semana, aprofundam essa tendência. Todos almejam estabelecer pontes de compreensão e diálogo entre mundos que coexistem e se atritam.
Que o futuro seriado Tropa de Elite sirva também a esse bom propósito.
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Jornalista