Foram entregues ao governo no sábado (10/12) os relatórios dos consórcios que participaram das análises e pesquisas técnicas para a implantação do modelo de TV digital a ser seguido pelo Brasil. Esses relatórios, somados aos estudos desenvolvidos pelos comitês montados pelo Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), servirão de base para que o governo defina oficialmente, em fevereiro de 2006, que tipo de televisão digital será adotada no Brasil.
Para alguns isso pode parecer uma questão meramente técnica, mas na verdade a tecnologia em si é algo meramente acessório nessa discussão. O debate se dá no campo dos negócios, da política industrial, da cultura e do impacto social. Neste particular, não será exagerado dizer que se incluem condições mínimas para o exercício da cidadania.
A elaboração dos relatórios entregues ao governo consumiu algo em torno de 36 milhões de reais, o que é pouco, e o trabalho de quase 1.400 pesquisadores, o que é muito. Ao longo dos últimos oito meses, os consórcios nascidos em sua maior parte do meio acadêmico produziram um notável conjunto de informações e elaboraram modelos muitas vezes originais de middleware [software intermediário que conecta diferentes aplicações; por exemplo um banco de dados a um servidor web] e aplicativos.
O que vai ser escolhido a partir daí não é apenas um padrão tecnológico incapaz de ser percebido pelo telespectador (como o telespectador não pode perceber a diferença entre os padrões de cor NTSC e PAL-M, por exemplo). A decisão sobre o que fazer com tudo isso implica na verdade a definição do modelo de negócios a ser adotado num ambiente de TV digital – e com ela a resposta a importantíssimas questões ligadas à produção e circulação de conteúdo.
Estará sendo decidido, por exemplo, o tipo de serviço a ser ofertado; a possível entrada de novos players no ambiente de TV aberta; os mecanismos de distribuição de conteúdo para a telefonia móvel, que incluem a intermediação ou não das operadoras sobre o que os radiodifusores possam transmitir; os modelos de convivência e integração entre esses radiodifusores e as empresas de telecomunicação; e, sobretudo, a forma de adoção de propriedades específicas das plataformas digitais, como a alta-definição e a interatividade. Não é pouca coisa – e tudo isso tem um impacto enorme não apenas sobre o mercado mas sobre a sociedade que se vai construir na era da TV digital.
Suporte legítimo
O consumidor não está convenientemente informado sobre o que está acontecendo, mas em compensação ele não detém o monopólio da desinformação: os atores do mercado estão confusos e por isso adotam posturas contraditórias.
Um exemplo disso pode ser localizado na forma de ação do ministro Hélio Costa, das Comunicações. O ministro tem sido acusado de alinhamento excessivo com os radiodifusores; mas a forma peculiar pela qual conduz a questão digital pode estar criando uma armadilha para o setor que eventualmente goza de sua simpatia.
O trabalho desenvolvido pelos consórcios contratados pelo SB TVD, por exemplo, não chegou a ser convenientemente debatido com o Comitê Consultivo do órgão, que é a sua interface institucional com a indústria, o mercado e a sociedade civil. O atropelo aconteceu para que a instância apropriada do SBTVD não tivesse meios de pressionar pela adoção de um cenário de convergência, do qual poderia resultar a adoção de modelos de negócio que não se limitassem a reproduzir os já existentes.
Do ponto de vista legal, e sobretudo político, nada a opor. O ministério não tem mesmo a obrigação de ouvir uma entidade que ele criou para assessorá-lo. A questão, no entanto, é que tanto o trabalho de orientação tecnológica construído pelos consórcios quanto a massa crítica produzida pela sociedade civil são bons demais para serem ignorados. A caixa preta que se constrói em torno deles pode acabar obliterando, na melhor das hipóteses, idéias originais que transcendem a definição de modelos de negócios e geram contribuições que poderiam fazer o país tirar proveito da perplexidade universal em torno da nova televisão que está se desenhando.
As mais importantes giram em torno do desenvolvimento de aplicativos e a conseqüente necessidade da construção de modelos específicos de conteúdo. Nada disso será visível quando as principais redes de televisão começarem suas transmissões digitais em caráter experimental, no dia 7 de setembro de 2006, com todo o circo de marketing que as acompanhará. Mas será determinante em todos os passos seguintes. É o conjunto de aplicativos que vai dizer se a televisão digital vai se restringir aos novos patamares de qualidade de imagem e de formas de escolha de programação pelo espectador, ou se ela será o suporte legítimo para o que essa tecnologia de fato agrega ao meio.
Proveito social
O Brasil está começando bem sua caminhada para a implantação das plataformas digitais de televisão terrestre. Isto se deve ao bom trabalho desenvolvido pelos consórcios, que contemplaram sistemas de compressão e modulação compatíveis tanto com a necessidade de alinhamento aos padrões abertos quanto com o papel inclusivo que se espera da televisão aberta brasileira. Não se pode desconsiderar, por exemplo, que a penetração da TV por assinatura não chega a 7% no país, contra cerca de 90% na Europa e nos EUA, onde o espectador já optou em receber os sinais digitais por meio do cabo ou do satélite.
Muitos brasileiros vão assistir à Copa do Mundo em telões de plasma que, colocados nos bares ou nas vitrines dos shoppings, estarão mostrando a grande nitidez das imagens transmitidas e recebidas em HDTV (televisão de alta-definição). Seria útil explicar a todos esses torcedores que as Olimpíadas de 1988 já eram geradas e recebidas em HDTV na Coréia e no Japão. E também as Copas do Mundo de 1990 em diante.
O HDTV era analógico. A Sony o batizou de Hi-Vision. Não vingou porque era caro demais e justamente na mesma época os americanos avançaram muito no desenvolvimento de plataformas digitais. Mas sua definição, de 1225 linhas, era até superior à do HD de hoje. O que as plataformas digitais trazem de novidade, portanto, não é a melhor qualidade da imagem, mas a introdução de capacidades exclusivas, das quais a interatividade é a espinha dorsal.
Tirar proveito disso ou abrir mão de fazê-lo é uma questão de decisão política. O que não se pode esperar é que o mundo inteiro deixe de avançar no desenvolvimento de modelos de conteúdo que contemplem as novas possibilidades que se apresentam para o meio.
O receio de se utilizar a expressão ‘modelo de negócios’, como se isso representasse a implosão do que existe hoje, é parte da armadilha em que os radiodifusores podem estar caindo. Mudar o modelo de negócios significa, na verdade, permanecer como está. Porque as ferramentas que vão possibilitar a interatividade, mobilidade e integração com telefonia, por exemplo, são tão controláveis quanto uma ventania.
Em fevereiro do ano que vem haverá uma festa para dar ciência à nação dos modelos adotados para a implantação da TV digital no país – que, como este Observatório antecipou há meses, baseiam-se no padrão japonês modificado. O consumidor vai estar se perguntando se toda essa festa é para lhe apresentar um aparelho receptor de proporção 16 x 9, diferente do atual e uma imagem bem melhor. Seria bom se lhe pudéssemos responder que isso é apenas o princípio. Que o que estamos comemorando de verdade é a criação de condições para tirar proveito das propriedades das novas plataformas para criar modelos originais de conteúdo – e os aplicar em proveito do espectador brasileiro, e os exportar em proveito de toda a sociedade.