A Folha de S.Paulo publicou no domingo (28/11) uma ampla matéria (‘TV barra obrigação de exibir independentes’) que poderia ser usada nas universidades para mostrar como informações incompletas, ainda que inocentes, podem ser mais desinformativas do que os esforços orgânicos de desinformação.
Um grande esforço de desinformação, como se sabe, vem sendo perpetrado por boa parte da mídia desde que foi apresentado o projeto de criação da Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual), em agosto deste ano. Começou por buscar os excessos que havia na primeira versão do projeto (entre os quais algumas propostas seguramente concentracionistas, que poderiam induzir indesejáveis interferências no conteúdo) para torpedear todo o seu teor.
A maioria desses excessos caiu por terra logo na primeira reunião do Conselho Superior de Cinema – e ao longo das dez outras que se seguiram. Mas os ataques ao projeto continuaram, e nem sempre no campo das idéias.
É muito possível que uma rejeição tão genérica se deva simplesmente à imagem que restou de um projeto que acabou sendo preparado e lançado de forma atabalhoada. Mas é possível também que tal reação seja mais cerebral do que intuitiva – e tenha como base o repúdio à intenção, de fato contida no projeto, de se criar no Brasil alguma forma de regulação à distribuição do conteúdo audiovisual.
Controle estrangeiro
É preciso que se entenda que a regulação em si não é fruto de uma agenda ideológica inventada pelo governo brasileiro. Ela existe, solidamente implantada, em países como os EUA, a França, a Grã Bretanha e a Alemanha, para ficar só no grupo dos mais liberais.
Nesses países a lei distingue o emissor do produtor, cria condições para que as emissoras de televisão sejam impelidas a buscar em produtores externos parcelas substanciais de sua programação, estabelece porcentuais para isso e determina a participação das emissoras de TV na produção dessas obras. Trata-se, em quase todos os casos, de preceitos regulatórios não restritivos, mas inclusivos. Não se tira de um lado para dar ao outro. Apenas se preconiza direitos e oportunidades isonômicas à produção audiovisual, como é praxe em todas as demais indústrias.
Nos mercados em que existe esse tipo de regulação o resultado tem sido o fortalecimento da televisão – que exibe uma programação melhor e mais diversificada – e dos produtores que trabalham para prover o conteúdo que as emissoras vendem ou distribuem. Essa é a regra que vige nas relações entre emissores e produtores de televisão em todo o mundo.
Há diferenças entre os modelos. Mas o que não existe, no mundo civilizado, são casos em que o produtor de TV seja constrangido a não ter o direito de sequer disputar o espaço de produção dentro do mercado em que atua. Tal situação configura uma forma de censura que as sociedades de todos esses países dificilmente aceitariam.
Entre os principais argumentos que as emissoras de televisão brasileiras têm apresentado para fugir a qualquer forma de regulação está o alto índice de nacionalização de sua programação. Elas agem como se o perigo estivesse nos empresários estrangeiros que estariam dispostos a controlar de qualquer maneira a programação vista pelo povo brasileiro.
Pontos comuns
Durante o III Encontro Internacional de Televisão, realizado nos dias 25 e 26 de novembro, no Rio, o nome Rudolph Murdoch foi um dos mais citados, obviamente em decorrência da recente fusão Sky-DirecTV.
Para muitos dos participantes do encontro, entre eles importantes executivos de televisão, Murdoch parece ter entre seus principais objetivos de vida o de exterminar a identidade cultural da nação brasileira. A imagem insistentemente vendida é que são as emissoras brasileiras que estão lutando bravamente contra esse monstrengo do colonialismo cultural, exibindo, apesar de todas as dificuldades, uma programação altamente nacionalizada.
A insustentabilidade dessa tese chega aos limites do humorístico. Pastores evangélicos ou vendedores de tapetes, por exemplo, também são brasileiros. E os programas que apresentam, em muitas redes, são, ademais, produções independentes. Pelo raciocínio exposto, quem montar uma grade de programação composta exclusivamente por pregações evangélicas e vendas de tapetes ‘shiraz’ terá o maior índice de nacionalização e exibição de produção independente do país.
As sutilezas que existem no caso da televisão brasileira – e é isso que o texto da Folha tem visível dificuldade de captar – começam pelo fato de que as emissoras de TV utilizam o mesmo discurso mas estão falando de coisas diferentes. Exatamente por essa razão é que foram obrigadas a dividir suas formas institucionais de representação: desde a semana passada, a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão) interpreta os pontos de vista da Rede Globo, enquanto a Abra (Associação Brasileira de Radiodifusores) interpreta os de todas as outras, que são completamente diferentes.
É uma briga de cachorro grande, onde a produção independente brasileira é o elo mais fraco – um elo capilar dentro da cadeia, que pode ser rompido a qualquer momento. Ocorre, então, que não é politicamente cabível à produção independente brasileira buscar confrontações irreversíveis com as redes de televisão. O que ela deve fazer, em vez disso, é buscar pontos de interesse comum que possam levar a parcerias, não apenas comerciais mas principalmente políticas. Nesse quadro, o clima de Fla x Flu pode ser bom para render manchetes de página, dar a ilusão do contraditório e despertar a atenção de alguns leitores. Mas nem remotamente interpreta o que de fato acontece na dinâmica da formulação das políticas públicas para o setor.
Embrulhando peixe
Não há, nesse contexto, uma queda-de-braço entre produtores independentes e emissoras de televisão. E não há por várias razões. Em primeiro lugar, seria necessário determinar se a disputa é com a Globo ou se com o conjunto formado por todas as outras emissoras, que são braços bem diferentes. Em segundo porque qualquer dos braços seria mais forte que o dos produtores. Em terceiro, porque nenhum produtor, seja lá do que for, quer criar um ambiente de conflito permanente com seus clientes.
O que o produtor independente de TV quer é abrir mercado com esses clientes, e estabelecer alianças sólidas que decorram do entendimento de que a pluralização da produção televisiva é boa para todo mundo. Ele quer provar que a comercialização da produção independente é capaz de trazer mais qualidade, mais competitividade e menores custos para as emissoras.
É isso que interessa aos produtores – e também à sociedade brasileira. O que não interessa é a idéia de que os produtores estão vencendo a queda de braço, ou fazendo um a zero no Fla x Flu, e muito menos empurrando pela goela das emissoras um produto que elas não desejam.
O mercado de televisão não é um reality show, embora os jornais às vezes não percebam a diferença entre uma coisa e outra. No mundo real, nenhum produtor pensa em tornar-se inimigo a priori de quem compra e faz a difusão dos seus produtos. Isso pode ser bom para um jornalismo sensacionalista, que é efêmero como a duração de uma manchete de página. A página estará no dia seguinte embrulhando peixe, mas os produtores de televisão permanecerão no mercado quando as manchetes já forem outras.
Por um mercado saudável
Vamos aos fatos. O artigo do projeto da Ancinav a que o texto da Folha se refere (o antigo artigo 90) rezava que as emissoras firmarão anualmente um compromisso público para a exibição de um porcentual mínimo de obras de produção independente. Sua intenção é nobre, mas resultaria inviável por um conjunto de razões.
A primeira é de ordem prática: esse compromisso não é para ser firmado por cinco ou seis redes de televisão, mas por cada uma das emissoras no país, que são mais de 2.000. Mais de dois milhares de emissoras tão diferentes entre si que algumas não dispõem sequer de equipamentos de gravação e reprodução – e muito menos têm a autonomia das redes para firmar acordos de programação. Não há como obter dessas emissoras o compromisso de que estarão no ar no domingo seguinte…
A segunda razão é que um compromisso público dessa natureza quer dizer pouca coisa ou quase nada. Não existe a possibilidade de aplicação de sanções para a quebra desse compromisso. Por conseguinte, não existe compromisso algum.
Um substitutivo apresentado no âmbito do Conselho Superior de Cinema instituía simplesmente uma quota de tela para a exibição de produção independente. É uma alternativa bem melhor, seguramente a melhor entre todas as apresentadas. A principal razão para que se desconfie de sua eficácia, no entanto, está contida na própria matéria da Folha, quando esta descreve as quatro maiores produtoras independentes do país. Entre elas está a O2 (a maior produtora de publicidade da América Latina, e que produz Cidade dos Homens juntamente com a Globo) e também a Gugu Produções – a qual, segundo a matéria, está fechando o ano com faturamento de 4,5 milhões de reais e que acaba de investir 11 milhões de reais na construção de sua sede e outros 2 milhões de reais em equipamentos. Isso não é investimento típico de produtora independente, mas de emissora de televisão. Por outro lado, não seria difícil imaginar de onde viria a cota de produção independente do SBT, por exemplo.
Outra razão para que se reflita sobre a aplicação da quota de tela pura e simples está nas peculiaridades da televisão brasileira e no entendimento do que deveria ser a estratégia para modernizar a relação viciada que historicamente ocorre entre emissoras e produtores. O monolitismo do modelo brasileiro de televisão está na raiz disso. Em nenhum outro lugar do planeta ele é tão sólido. É como se estivéssemos lidando com dois modelos de televisão que convivem sob a capa de um só: o da Globo e o de todas as outras.
A Globo bate na tecla de que está sendo punida por um crime que não cometeu. Há dois erros nesse argumento. O primeiro é que a regulação não existe para punir ninguém, mas para criar um mercado mais saudável – o que, em grande parte, a própria ação da Globo vem preconizando. O segundo é que não se pode legislar pontualmente. O que vale para uma tem que valer para as outras.
Traços de amadorismo
A matéria da Folha cita Metamorphoses, novela que a produtora Casablanca realizou para a Record, como um exemplo de produto que conseguiu conquistar ‘uma brecha na programação’. A realidade, infelizmente, não é essa.
O caso de Metamorphoses (ao qual este Observatório já se referiu em outras ocasiões) exprime uma distorção grave nesta relação, que cabe aos produtores e à sociedade evitar que se repita. Uma situação em que se transferiu para uma só parceira, a produtora, todos os ônus financeiros de um fracasso anunciado. O desastre em que o projeto (em si uma grande fogueira de vaidades, intrigas e despreparo) se constituiu desabou inteiramente sobre uma das partes, circunstancialmente a maior finishing house do país – que, portanto, pôde bancar os altos custos de uma idéia natimorta.
Mas não é exemplo de conquista alguma e só aconteceu por um capricho da própria Casablanca, bem aproveitado pela rede que abrigou, quase de graça, um produto concebido com traços constrangedores de amadorismo. Não é exatamente isso que se está pensando quando se fala da necessidade de implantação de mecanismos de apoio à produção independente de TV no país.
Choque de culturas
Neste ambiente corroído por tantas distorções, a única forma responsável de ação não está na busca do confronto predatório, mas da oportunidade para a mudança da cultura vigente no mercado televisivo.
Não existe outra alternativa visível e ainda assim as dificuldades são muitas. A primeira é que essa cultura (mais especificamente a noção de que exibidora e produtora são a mesma coisa) existe desde que a televisão se instalou no país. É algo consolidado há muito tempo, cristalizado pela ação inercial e amparado pela falsa premissa de que as emissoras de televisão não receberam do Estado apenas a concessão para transmitir e comercializar programação, mas também a licença para monopolizar a produção.
A segunda dificuldade é o fato de emissoras com ideários tão diferentes darem a falsa impressão de que, pelo menos no que tange à relação com a produção independente, estão falando em uníssono.
É difícil entender o que faz a Globo aceitar o papel de defender o que ela própria não acredita, já que sua relação com a produção de conteúdo é bem distinta da relação sustentada pelas demais emissoras. Trata-se visivelmente de uma questão de princípio, mas que se torna cada vez mais ruidosa. Basta interpretar com um mínimo de seriedade a história política recente da televisão brasileira para perceber que essa posição será revista em breve – tal como no ano passado as circunstâncias provocaram a mudança da postura da emissora em relação às mudanças no artigo 222 da Constituição, que trata da presença do capital estrangeiro nas empresas de comunicação.
Quando a Globo se tornar franca aliada das produtoras independentes – e é inevitável que isso aconteça em pouco tempo – então estarão criadas condições básicas para a mudança da cultura em todo o ambiente da televisão brasileira.
Enquanto isso não acontece, a estratégia política para fortalecer a produção independente junto à televisão não consiste em confrontar todas as emissoras de uma só vez, mas em criar canais de intersecção (não apenas de diálogo) entre as emissoras e a produção. É precisamente nisso que consiste uma terceira proposta, que acabou contemplada pelo comitê civil do Conselho Superior de Cinema. Criou-se um Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica e Audiovisual Brasileira) para as emissoras de televisão – e descontos neste Condecine para as emissoras que trabalharem com percentuais superiores a 20% de produção independente.
Há aí uma discreta analogia com o que aconteceu no artigo 39 da Medida Provisória 2228-1, que criou uma grande taxação para as programadoras de TV por assinatura e uma boa redução para as que aplicarem a taxa na co-produção de obras brasileiras. O expediente provocou muitas fraudes que ainda estão por ser corrigidas, mas gerou 20 milhões de reais para a produção e colocou o produto brasileiro em redes internacionais que não cogitavam dessa possibilidade.
No caso das emissoras abertas, o substitutivo aprovado ao artigo 90 pode numericamente não representar muita coisa. Mas o foco da questão não está no volume de dinheiro gerado para a produção, e sim na sua significação política. O que é de fato relevante é que pela primeira vez em mais de 50 anos de televisão no Brasil um preceito legislativo é criado no âmbito da produção e distribuição de conteúdo. Um vínculo é estabelecido entre as taxações a que as emissoras estão sujeitas e o volume de produções independentes que elas estiverem comprando.
O resultado pode ser menos visível e de menor impacto que o estabelecimento da quota de tela, por exemplo. Mas será muito mais eficaz e consistente. Além disso, é notável o fato de que essa aprovação tenha sido conseguida por consenso dentro do Conselho Superior de Cinema, com o voto inclusive dos representantes das televisões. Esse é um fato político que não pode ser desprezado.
Nunca se avançou tanto no sentido de quebrar resistências e começar a mudar uma cultura entranhada há cinco décadas, mantendo-se ao mesmo tempo um clima de cooperação – não de guerra – entre os produtores de televisão e as emissoras que serão as compradoras e exibidoras de seus produtos.
Essa foi uma das grandes conquistas do projeto de lei que será entregue ao presidente da República para que ele o envie ao Congresso. Resultou de uma costura política improvável e que, sem alarde nem proselitismo, pode começar a mudar uma relação viciada há meio século.
Quanto às manchetes levianas, elas prestariam um favor ao leitor se continuassem se ocupando do casamento do Luciano Huck.