Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

TV em transe, a vida além da Globo

Mais uma vez a semana terminou agitada no meio audiovisual com a decisão da Abert de interromper unilateralmente as negociações que visam a elaboração de relatório sobre o projeto de emenda constitucional (PEC 59/03) que regulamenta o inciso III do artigo 221 da Constituição Federal.

O processo estava em curso na Comissão de Regionalização da Produção do Conselho de Comunicação Social (CCS), buscando chegar a uma formulação de consenso para a apreciação do projeto de lei proposto pela deputada Jandira Feghali (PbdoB-RJ).

Teoricamente, as dificuldades apareceram no artigo 4º, que trata da obrigatoriedade de exibição semanal de ‘uma obra cinematográfica ou videofonográfica nacional’. A Abert alega que essa exigência é inconstitucional e já havia apresentado um parecer jurídico neste sentido na reunião do CCS de 2 de março.

Para os componentes do Conselho que defendem a aprovação da Lei Jandira do jeito que está, no entanto, esta não é apenas uma resistência do empresariado do segmento contra o estabelecimento de uma exigência legal. Trata-se, nas palavras do conselheiro Daniel Herz, dirigente do Fórum Nacional Para a Democratização da Comunicação, ‘de uma resistência frontal contra a exibição da produção cinematográfica na TV’. Para Herz, ‘o rompimento unilateral do processo de negociação foi provocado pelo mesmo empresariado que resiste a cumprir os princípios constitucionais do capítulo da comunicação’. E acrescenta: ‘A Constituição de 1988 diz que o ‘estímulo à produção independente’ nacional é um ‘princípio’ que deve ser atendido pela ‘produção e a programação das emissoras de rádio e televisão’. Contudo, o empresariado de televisão, há mais de uma década e meia, não apenas não estimula a produção nacional independente, como a discrimina e obstrui sua a exibição, principalmente do cinema brasileiro’.

Questão fechada

A retirada da Abert das negociações provocou reação imediata do Congresso Brasileiro de Cinema (CBC), um fórum que reúne cerca de 50 entidades ligadas ao audiovisual. No domingo (14/3), o cineasta Geraldo Moraes, presidente do CBC, preparou uma nota oficial em tom de manifesto para ser enviada na terça-feira, 16, ao Conselho de Comunicação Social do Senado, ao Ministério da Cultura e também à Casa Civil da Presidência da República.

A Casa Civil está no momento formulando uma nova Lei do Audiovisual que será submetida antes de abril ao Conselho Superior de Cinema – e que prevê a criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) no lugar da Agência Nacional do Cinema (Ancine), com funções regulatórias também sobre a televisão.

A própria iminência da discussão desse projeto já coloca em observação a Lei Jandira, uma vez que questões ligadas a cotas para a difusão de programação de produção independente e regionalizada certamente serão da alçada da futura Ancinav.

O Ministério da Cultura, que é quem está por trás do projeto, acabou ficando numa posição delicada, já que oficialmente está afinado com a Lei Jandira e defendendo sua imediata aprovação, mas na prática tenta estabelecer com as emissoras de televisão uma costura que lhe dê condições políticas para fazer passar a Ancinav. Isso não aconteceu por ocasião da Medida Provisória que há dois anos criou a Ancine, justamente por força de uma grande pressão das emissoras de televisão. Elas conseguiram, cerca de 48 horas antes da publicação da MP, deixar a televisão aberta de fora dos tentáculos da nova agência. O governo está empenhado em evitar que isso se repita.

Ironicamente, essa tentativa de costura se dá multilateralmente, ao menos para efeitos externos. Os dois almoços promovidos pela Globo para 40 cineastas brasileiros, em janeiro, tiveram no cardápio manifestações explicitas de aproximação da emissora com o cinema brasileiro e a produção independente, mas seus efeitos foram mais controvertidos do que se esperava.

Os debates nas listas de discussão da internet tornaram-se acalorados, para dizer o mínimo, e recrudesceram agora, depois da interrupção das negociações da PEC 59. Mesmo que não tenha sido a responsável pelo fechamento da questão, a emissora carioca acabou sendo lembrada.

Nem cultura nem empregos

A estratégia da Globo consiste não apenas em forçar uma aproximação com cineastas e formadores de opinião, mas também disseminar a idéia de que a emissora produz acima de tudo cultura brasileira, em quantidade e qualidade muito maior do que todas as suas concorrentes. A Globo fez isso por meio de uma imensa campanha publicitária, que incluiu desde spots na sua programação até a promoção de um seminário, Conteúdo Brasil, em que o principal produto vendido era o reconhecimento da contribuição que a emissora tem dado para a produção de conteúdo bom e brasileiro.

Ainda que isso seja indiscutivelmente verdadeiro, é só parcialmente pertinente – e realça a grande ironia que está por trás da regulamentação do artigo 221: nem as emissoras nem os produtores que divergem dela tem a noção exata dos problemas que estão em questão.

É claro, mas não é relevante, que por trás da estratégia da Globo esteja a necessidade de conquistar aliados para seu pleito de conseguir empréstimo do BNDES para saldar dívidas que chegam a 6 bilhões de reais. Desde que mudou sua postura em relação ao artigo 222, que permitiu a entrada de capital estrangeiro no limite de 30% nas empresas de comunicação brasileira, a Globo já sinalizava uma reação heterodoxa à sua necessidade de equacionar dívidas contraídas em dólares pela Globopar, a maior parte para as operações de TV por assinatura, mas das quais a emissora, que nunca deixou de ser lucrativa, era uma das principais avalistas.

O que a Globo está tentando dizer, ao bater na tecla da cultura brasileira e oferecer penne alla rabiatta aos cineastas, talvez seja que sua dívida financeira é pequena se comparada à dívida social das redes que simplesmente não produzem no Brasil – e, quando o fazem, não estão gerando cultura nem empregos, mas produtos dos quais nenhum brasileiro é capaz de se orgulhar. Se esse é o seu discurso, deve-se no mínimo prestar atenção às verdades que ele contém.

Engessamento da pluralidade

A crise entre a Abert e a bancada que defende irrestritamente a Lei Jandira, por exemplo, nada tem a ver com o artigo 4º, que serviu apenas como um pretexto técnico para que as emissoras caíssem fora desse foro de discussão, que absolutamente não lhes interessava.

A argüição de sua inconstitucionalidade está num estudo técnico encomendado pela Globo ao professor Luis Roberto Barroso, da UERJ, e apresentado ao CCS pelo representante da emissora, Evandro Guimarães. O mesmo artigo, no entanto, é contestado também pela ABTA (Associação Brasileira de TV por Assinatura), que cuida dos interesses das operadoras de TV por assinatura.

É preciso aclarar um conjunto de complexidades na questão da diversificação da produção televisiva no país para que haja campo fértil para negociações. Saber qual é a natureza de ‘produção independente’ é uma delas, assim como entender e levar em consideração os mecanismos de comercialização das emissoras.

Um bom case study pode ser localizado no domingo (14/3), quando a Record lançou uma novela de 5 milhões de dólares, Metamorphoses, totalmente realizada por uma produtora independente, a Casablanca. O fato, contudo, está longe de caracterizar a compra de um produto independente e muito menos a terceirização de um produto da própria emissora. Pelo contrato, a Record paga à Casablanca de acordo com a audiência conseguida pela novela. O risco, portanto, não é da emissora, mas da produtora.

A Casablanca, maior finishing house brasileira, é dona da Tele Image – e bem mais próxima do tamanho de uma pequena rede de televisão que de uma grande produtora de conteúdo. Pode correr esse tipo de risco, ao contrário de 99% das produtoras de televisão do país.

Contratos de risco dessa natureza não encontram muitos paralelos nas negociações internacionais entre emissoras de televisão e produtoras de conteúdo, principalmente nos EUA, pátria da livre-iniciativa, onde mais de 60% de toda a produção levada ao ar pelas grandes redes é feita fora delas.

Não há notícia, nem mesmo na compra de produtos estrangeiros por emissoras brasileiras, de contratos que condicionem o pagamento aos resultados de audiência. Pode-se, portanto, saudar a entrada da rede do bispo Macedo na produção de teledramaturgia de qualidade (a qualidade técnica é uma forte característica da Casablanca), mas esse é tipicamente um acordo que tem mais chances de engessar a pluralidade da produção do que beneficiá-la – e jamais servirá de padrão para a formatação de parcerias entre emissoras de televisão e produtores independentes.

Quanto pior, melhor

Para que um diálogo entre exibidoras e produtores de conteúdo possa acontecer de forma produtiva, mecanismos de produção e comercialização devem ser conhecidos e mitos devem ser quebrados. É emblemático, por exemplo, o comportamento do apresentador José Luis Datena. Na quarta-feira (3/3), Datena foi à loucura com o baixo resultado de audiência de seu programa na Bandeirantes e exibiu o medidor do Ibope diante das câmeras; revelou assim, ao público, que seu programa não estava passando de minguados 1,7 pontos de audiência.

A atitude deixou claro que os programas policiais do horário de acesso estão disputando na verdade faixas muito estreitas de audiência.. As emissoras investem nesse tipo de conteúdo na suposição de poder contrabalançar o baixo faturamento, alavancando espectadores para o horário nobre. Não é o que acontece. O povão não compra. Os anunciantes também não. Quem sustenta o mito é o medo de ser diferente, de fazer melhor.

Quase ao mesmo tempo, a Globo anunciava seus resultados financeiros do ano passado. A rede ficou com 78% de todo o bolo publicitário para a TV. Isso está muito acima do seu share de audiência. Uma primeira leitura poderia sugerir que o departamento comercial da Globo é melhor que os demais. A verdade, porém, é mais complexa. A hegemonia da sua participação no mercado publicitário sobre a participação na audiência indica apenas que o anunciante está colocando em perspectiva seu investimento na quantidade.

As duas revelações estão dizendo a mesma coisa. Que a popularidade de uma programação não é diretamente proporcional à sua capacidade de nivelar por baixo. No mercado, todo mundo sabe disso. Atrações como Boris Casoy ou Jô Soares não dão audiência mas faturam. Já alguns dos programas que apelam para o primata que há em cada ser humano podem ganhar espasmos de popularidade, mas tendem a não faturar – e ainda causar ‘desfaturamento’ em outros horários.

Em 1991, o SBT teve que pedir desculpas por escrito aos seus anunciantes pelo nível de O Povo na TV, que chegou a ser a maior audiência da emissora mas provocou um notável ‘desfaturamento’ em toda a rede. Passados mais de dez anos, programas popularescos continuam tendendo a não faturar – e já não são competitivos no que diz respeito à audiência. Isso parece muito claro, exceto dentro das emissoras. É um dos mitos que amparam o ideário do quanto pior, melhor.

Posturas sectárias

O que os números do faturamento da Globo estão gritando é que cinco redes comerciais de televisão, além das televisões públicas, disputam 22% de todo o mercado publicitário – e que uma sozinha detém os outros 78%. A grande ironia é que os maiores responsáveis pelo desequilíbrio da qualidade na TV não são os que tiram proveito dele, mas quem está perdendo com isso.

Nenhuma estratégia poderia ser melhor para consolidar a liderança tão ampla de uma rede do que impingir conteúdo tão imitativo e banal às suas concorrentes. O denominador comum da programação televisiva está bem menos para a banalização, como se supunha, do que para a capacidade de fazer diferente. A fraca resposta das redes que mais apelam para a vulgaridade indica que a baixaria nem sempre é competitiva.

A produção de conteúdo para televisão – no Brasil e em qualquer parte do mundo – é uma atividade com forte impacto sobre a construção da imagem do país e a sedimentação da sua cultura. É também uma atividade econômica de peso, parte de um elo que começa nos modelos de financiamento à produção e vai terminar justamente nas emissoras de televisão, que são quem exibem e comercializam o produto.

Desde os anos 1970, no entanto, com a verticalização do modelo de negócios na televisão brasileira as redes abertas tornaram-se monolíticas, auto-suficientes e dispuseram-se a produzir praticamente tudo que exibem. Não apenas esse modelo não encontrava respaldo em qualquer outros existente no mundo, como acabou por gerar uma atrofia na produção de televisão e na qualidade do produto exibido, com um impacto altamente negativo sobre o compromisso constitucional das emissoras de televisão com a sociedade.

A boa notícia é que essa distorção passou a ser discutida, depois de anos em que pareceu relegada à condição de uma situação de fato ruim, mas que a sociedade tem que engolir para o resto da vida. O problema é que depois de tanto tempo e de tantas distorções sedimentadas, depois que a existência potencial de centros produtores pluralizados e regionais foi congelada, o debate sobre a questão tem que se dar tanto ao nível político quanto técnico.

A pluralização da produção televisiva no Brasil é, a esta altura, inestancável. O desafio mais importante é fazê-la eficiente para os produtores, as emissoras e a sociedade brasileira – e não transformá-la em objeto de manipulações e posturas sectárias que só vão contribuir para o atraso do processo, assim como da televisão e do povo brasileiros.