Não têm faltado reflexões sobre a construção do caráter da TV pública brasileira. Nos últimos anos fizemos dois fóruns nacionais, quando filosofamos à vontade. Mostramos, através de artigos, seminários, livros e palestras que temos uma boa teoria sobre como deve ser uma televisão pública.
Sabemos, por exemplo, que esse tipo de TV deve se subordinar aos interesses da sociedade, ajudar na formação da cidadania, ter um conteúdo diferente da TV comercial ou, no mínimo, uma abordagem diferente quando as pautas coincidirem. Quem está do lado de dentro, no entanto, sabe como é difícil levar isso à prática – motivo para mais este artigo.
Comecemos por entender que o brasileiro aprendeu a ver televisão ensinado pela TV Globo. Daí que as escolas, os profissionais, os concorrentes, todos querem fazer TV Globo na vida – prova da incontestável competência da emissora líder. É uma pena que seja assim, mas quem quiser se dar bem em televisão neste país tem que fazer TV Globo – que bebeu da fonte americana, sem nenhum demérito para quem conduz um negócio.
Tratamento de conteúdo
Não creio que a TV pública deva partir para uma ruptura brusca com esse modelo, mas pode introduzir elementos diferentes na relação com o telespectador, tratando-o como cidadão e buscando a perspectiva dele em seus conteúdos, sem desprezar o ‘idioma’com o qual ele está acostumado. Tais mudanças, se não forem um reaprendizado, serão a formulação de alternativas provocadoras. Com o tempo, poderão agregar novos formatos, ou ajudar na libertação de formatos viciantes, agora com a circunstância das mudanças tecnológicas, formando um ambiente de revolução. Por isto a TV pública deve preservar, em paralelo, espaços para experimentação.
Dois elementos são chaves nessas tentativas, em que não prescrevemos rupturas bruscas de modelos: a intencionalidade no trato dos conteúdos e a preparação dos profissionais – nas emissoras e nas escolas. A ruptura progressiva deve começar nas escolas, aproveitando o impulso das novas tecnologias, mesmo que a maioria dessas escolas ainda estejam programadas para ensinar TV Globo. Na TV comercial, os profissionais têm rotinas e modelos industriais, que visam audiência e redução de custos – enfim, apenas um negócio. Essa esteira de produção, quase um fordismo, é mais nítida nos jornalísticos, que são apenas uma das linhas de produtos feitos para preencher o intervalo que existe entre um brake e outro, ainda chamado de programação.
Na comparação entre TVs comerciais e públicas, o mesmo conteúdo certamente tem que receber tratamentos diferentes. Tenhamos como exemplo os casos de violência: podemos fazer a tela sangrar e segurar a audiência ou contribuir para a compreensão das circunstâncias dos fatos, estimular o senso crítico e o exercício da cidadania, mesmo mantendo o emocional intrínseco em cada episódio. Para conceber um tratamento a ser dado a cada conteúdo, o profissional tem que estar preparado e exercitar a tormenta do raciocínio todo santo dia. Ou seja, temos que provocar e espremer o melhor do cérebro de cada jornalista, de cada roteirista e de cada diretor de programa para desviá-los dos objetivos comerciais e conectá-lo, na prática, aos interesses da sociedade.
Então, vamos à prática. Sabemos todos que televisão é um veículo que flutua nas tensões da superfície, por sua própria natureza e sem demérito. O que se pode cobrar de imediato é o link com as fontes de conteúdos mais profundas e consistentes, que dão alguma sustentação, científica ou não, ao que está na superfície. Para falarmos da violência, teremos mais propriedade se enxergarmos o conhecimento existente sobre distribuição de renda, corrupção, impunidade, discriminação, disponibilidade de educação e cultura e perspectivas oferecidas aos jovens.
Universidades e grupos de estudos produzem e interpretam dados sobre os processos da violência e instituições sociais (ONGs ou não) são capazes de decodificar os impactos, sofrimentos e desejos das comunidades mais vitimadas. Até há bem pouco tempo, os valores dessas comunidades, os elementos que formam o seu tecido, sequer mereciam consideração. É muito mais do que anotar os dados do BO e fazer o off, colado numa entrevista com o delegado e/ou o bandido.
Claro que não é para colocar tudo isso em cada matéria, mas este lastro dá ao profissional outra condição de tratamento desse conteúdo e de elaboração daquilo que vai entregar à sociedade. Esse tipo de link é modelo que pode e deve ser aplicado aos demais temas – seja astronomia, cultura, economia… Importante é compreender que o veículo labora na superfície, mas o profissional deve ir fundo.
Cidadania e protagonismo
Para começarmos a girar essa roda de aculturação, uma dinâmica que me parece adequada e bem absorvida são os seminários acoplados a oficinas. Seriam eventos temáticos, dentre questões escolhidas como relevantes (segurança/violência, economia, saúde, cultura, produção científica, educação etc.), abordadas em dois eixos principais: o estado da arte e o desempenho da TV pública. Ou seja: o que se sabe sobre o tema, como ele é tratado atualmente e como deveria aparecer na TV pública. E caberia às oficinas o papel crucial da iniciação.
Esquematicamente poderíamos percorrer as seguintes etapas:
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Estudar as práticas do jornalismo sobre o tema escolhido;**
Identificar fontes de informação, pesquisadores e instituições dedicadas ao tema, em seus vários aspectos e com eles estabelecer conexões;**
Organizar as informações obtidas e montar o programa de atividades. Cabe às escolas adotá-lo na sua grade e às emissoras liberar e pautar seus profissionais para participar dele;**
Seminários levam estas pessoas e conteúdos à discussão com estudantes e profissionais;**
Oficinas fazem a iniciação das mudanças e geram novas discussões;**
As redações estabelecem relações permanentes com as fontes identificadas.Importante regionalizar este esforço, porque cada tema tem diferenças enormes de uma região para outra. Uma emissora precisa decidir se cobre economia sob a ótica dos consumidores ou dos empresários – ou se reserva espaço para os dois. Mas o que é importante em São Paulo não pode ser imposto ao resto do país. De que é feita a economia do Norte/Nordeste? Como funciona o Centro-Oeste? Em todos os casos há oportunidades para abordagens nacionais, mas sem imposições de conteúdos. Por estas reflexões, cada parte do Brasil poderá identificar as abordagens necessárias, os temas relevantes e ainda ausentes da programação, enfim, ajustar seu conteúdo à sua realidade e impor-se ante o colonialismo eletrônico, vigente através das redes nacionais.
No embalo de uma TV pública melhor, ocorre a contaminação da TV privada. Este é mais um papel das TVs públicas: servir de contraponto, referência e laboratório para melhorar as emissoras comerciais. Vale lembrar este exemplo recente: o segmento que abriu espaço para as periferias das grandes cidades não foi o das TVs comerciais – foram as públicas. E este é apenas uma dentre tantas ousadias, às vezes efêmeras por falta de suporte financeiro. Sem a tal ‘bufunfa’ não dá para segurar os talentos criados e depois capturados pela força da grana das TVs privadas. Enquanto estão do lado de cá, eles teimam em promover cidadania e protagonismo aos que hoje são apenas consumidores e massa de manobra. Apesar do controle remoto.
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Jornalista, especialista em Gestão Estratégica da Informação (UFMG), foi presidente da Fundação TV Minas e da Abepec – Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais