Ao falar na segunda-feira (30/5), durante a posse dos dois novos diretores da Agencia Nacional do Cinema (Ancine), na sede da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), o ministro da Cultura Gilberto Gil explicitou uma nova proposta para o audiovisual que em muitos pontos pode ser conflitante com o programa original de governo, mas que de certa forma estabelece uma posição em relação ao embate que havia se instalado na atividade desde o início dos debates em torno da Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual).
Gil afirmou que é preciso dar ‘um choque de capitalismo no cinema nacional’. Segundo o ministro, ‘os filmes brasileiros, em sua maioria, devem ser pensados desde o princípio como produtos para satisfazer o público e pagar-se, além de bancar os próximos e dar retorno aos investidores’. E disse mais: ‘A cadeia produtiva deve se remunerar na bilheteria, não com o investimento público. Este, por sua vez, deve ser um estímulo, não a única fonte de recursos; e deve chegar equilibradamente ao conjunto da atividade nas formas de incentivo fiscal, como agora, e também de crédito barato, fundos públicos e prêmio de performance’.
Ninguém em sã consciência pode ser contra o bom desempenho econômico de uma atividade, assim como ninguém é a favor da fome ou do desemprego. O discurso do ministro poderia, então, parecer bastante óbvio, não fosse por algumas peculiaridades da atividade. Entre elas está o fato que todas as cinematografias do mundo, com exceção da norte-americana e da indiana, ainda não encontraram meios de auto-sustentabilidade e, portanto, dependem do Estado para a sua sobrevivência.
Democrática e plural
O que o ministro preconizou, em resumo, foi a hegemonia de um modelo de produção e comercialização que de fato está dando certo no Brasil: a da união das majors (as grandes distribuidoras norte-americanas) com o artigo 3o da Lei do Audiovisual e co-produtores de alto poder de ação na mídia (como a Globo Filmes) para fazer alavancar a produção e promover a sua auto-sustentabilidade.
Mas há problemas neste raciocínio. O primeiro é que não há um indício sequer que este modelo (como todos os outros existentes) resulte numa produção auto-sustentável. Depois, Gil afirma que os filmes brasileiros ‘em sua maioria’ devem ser pensados dessa forma – e tal modelo tem no momento a capacidade para atender apenas a uma pequena minoria, 10 ou 12 filmes por ano, menos que a terça parte da produção.
O ministro repetiu quatro ou cinco vezes o exemplo de três filmes em particular – Lisbela e o Prisioneiro, Carandiru e Cidade de Deus – que tornaram-se legendas de sucesso entre 2002 e 2003. Os três estão entre as dezenas que se valeram do modelo citado acima, para fazer cada um mais de 3 milhões de espectadores. Valeram-se também de circunstâncias excepcionais: a primeira, a qualidade intrínseca de cada um; outra, o quadro de negativa excepcionalidade do cinema estrangeiro naquele momento (na ocasião, os grandes títulos americanos foram mal em todo o mundo, inclusive no Brasil). Por conta disso, elevaram a participação do cinema brasileiro de 9% para 21% do mercado, mas até as pulgas das salas de exibição sabiam que estavam diante de um bolha.
Esses filmes são um notável exemplo de sucesso mas não constituem a base para a instalação de qualquer modelo hegemônico.
Isso acontece por um grande número de razões. Em primeiro lugar, esse mesmo modelo não tem servido, nos últimos dois anos, para gerar qualquer desempenho de bilheteria longinquamente comparável ao daqueles títulos; depois, porque a tentativa exportar essa fórmula para os outros 70% da produção brasileira, além de ser aritmeticamente impossível (não existem majors, nem investimento de mídia, nem volume de artigo 3o para tanto) equivaleria ao esfacelamento da diversidade que deve haver em qualquer carteira de produção cinematográfica – e que existe, por exemplo, na produção norte-americana, mais do que em qualquer outra no mundo.
A inobservância do princípio dessa diversidade é fatal para uma cinematografia, tanto sob a ótica do seu desempenho comercial quanto para o que ela representa em termos de construção de uma imagem democrática e plural do país. Por isso quase todas as sociedades do mundo investem na produção audiovisual, mesmo tendo problemas de alimentação para resolver.
Momento delicado
O apego a modelos mágicos tem tido historicamente o resultado que se conhece tanto na economia quanto na produção cultural brasileira. No que diz respeito a esta última, a única cláusula pétrea com que se pode contar é a própria diversidade, já que produção cultural emana da sociedade e a sociedade é plural. Deixar de reconhecer esse fato tão simples equivale a se instituir o funk, ou o rock, por exemplo, como o modelo de música a ser produzido no país, seguindo o que apontam os resultados de vendas das gravadoras.
A polarização que se instalou na comunidade audiovisual brasileira nos últimos meses não trouxe benefícios a qualquer dos lados e muito menos à atividade em si. À discutível abrangência do projeto da Ancinav, que avançava sobre o cinema e também sobre a televisão e as telecomunicações, chegando até à taxação de setores industriais estranhos ao audiovisual, seguiu-se a formação de frentes igualmente sectárias, preconizando em larga escala a aparência de uniformização da produção audiovisual em torno de um produto ‘de mercado’.
Aparência mesmo, porque a simples aposição do rótulo de ‘produto de mercado’ não garante o trânsito desse produto no mercado. O que faz na maioria das vezes é gerar Frankensteins desengonçados com leituras particularmente primárias sobre suas estratégias para chegar ao grande público. E é isso, desgraçadamente, o que tem acontecido com a maioria da produção que se apóia na ilusão da existência de uma cartilha de mercado.
A produção cinematográfica brasileira vive um momento delicado e o mesmo acontece com toda a atividade audiovisual – televisão inclusive. O modelo de financiamento da produção através das leis de incentivo fiscal (não só por meio do artigo 3o da Lei do Audiovisual, mas também do seu artigo 1o, que busca aplicação de todo tipo de empresa, da lei Rouanet e de leis municipais e estaduais) não é o desejável, mas ele está longe de se esgotar – e não existem modelos melhores no horizonte.
Eleições de 2006
A questão essencial consiste nas evidentes motivações políticas para os pactos circunstanciais que são firmados no âmbito da construção de um ambiente de produção e comercialização para o cinema e o audiovisual. Essas motivações têm como pano de fundo as eleições presidenciais de 2006 e a sustentação que o atual governo vai precisar, inclusive da mídia.
Não há nada de ilegítimo nisso. A ação faz parte do jogo político e o noticiário lembra que entre Severinos e Jeffersons há acordos muito piores sendo feitos todos os dias.
Mas sustentar, a essa altura, a hegemonia de um modelo de produção, qualquer que seja ele, sobre todos os outros é, para dizer o mínimo, um procedimento autofágico. Basta lembrar que há poucos anos os protagonistas eram os mesmos, mas o modelo sustentado era o contrário, o de um cinema ‘cultural’ não submisso ao mercado, como se todos os cinemas não fossem culturais e como se alguma forma de criação audiovisual pudesse ficar alheia ao mercado.
O que não se deve esquecer é que os interesses políticos se vão e a atividade continua. O mercado é necessariamente plural – isso não vai mudar nunca e os modelos de produção têm que ser construídos a partir desta sinalização. O que não se pode querer fazer é o contrário, isto é, criar um mercado a partir de um modelo de produção que num determinado momento seja o mais confortável.
Os pólos se confrontam hoje na produção audiovisual brasileira não são ideológicos, mas políticos. Gilberto Gil falou como ministro de Estado, interpretando a condução política de um presidente da República. Exteriorizou uma tomada de posição. Não importa se ela representa um avanço ou um retrocesso. Cabe ao setor atuar sob esses parâmetros, que irão vigorar até as eleições do próximo ano. Mas também separar as circunstâncias da sua essência, porque o cinema e a televisão brasileiros continuarão existindo muito depois disso.