Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um outro olhar sobre as guerras

O Oriente Médio tem se caracterizado nas últimas décadas pela instabilidade política e pelos conflitos bélicos. [Oriente Médio é um termo comumente utilizado para uma região localizada a leste do mar Mediterrâneo, envolvendo ao mesmo tempo duas zonas de transição entre três continentes: Europa e Ásia, ao norte, e África e Ásia, ao sul.] É compreensível, portanto, que se levantem dúvidas sobre a presença humana na região: por que palestinos e israelenses vivem em conflito há tanto tempo? Transcorridos 60 anos desde a criação do estado de Israel (1948), por que ainda não há um estado da Palestina igualmente reconhecido? É viável manter populações humanas auto-sustentadas e não-belicosas na região? É factível trabalhar em prol de uma sociedade transnacional no Oriente Médio, na qual cidadãos de origens, etnias e crenças religiosas diferentes possam conviver de modo civilizado? Afinal, por que as Nações Unidas não mantêm forças de segurança na região?

A imprensa costuma oferecer ‘explicações’ para os conflitos no Oriente Médio com base em argumentos de natureza religiosa ou étnica. Argumentos desse tipo podem ser fáceis de vender para o grande público, mas não parecem ser apropriados a ponto de sustentar uma explicação consistente. Quer dizer, ainda que todo e qualquer conflito intergrupal tenha uma carga ideológica própria, a ideologia por si só não é suficiente para explicar a origem e manutenção de conflitos bélicos dessa magnitude. Deve haver algo mais substantivo por trás dos adjetivos que israelenses e palestinos vivem a lançar uns contra os outros.

‘Não há lugar para negociação’

Uma possível explicação para a origem dos conflitos no Oriente Médio tem a ver com o uso dos recursos naturais [ver Herz, M. 2001. ‘O colapso das negociações de paz’, Ciência Hoje 177: 30-6]. A exploração das reservas de petróleo existentes na região seria um exemplo. Todavia, um recurso particularmente crucial naquela região são as fontes de água. A esse respeito, aliás, cabe registrar aqui os comentários de um observador [Pimm, S. 2005. Terras da Terra. Londrina, Editora Planta]:

‘Veja o conflito na bacia do rio Jordão. Em 1990, o rei Hussein declarou que a água era a única questão que o levaria à guerra com Israel. A retórica é recíproca: o ex-ministro da Agricultura de Israel Ben-Meir disse basicamente a mesma coisa. Não é difícil entender o porquê. Com seus tamanhos populacionais atuais, Israel, Jordânia e Síria são importadores de cereais. Os três países têm um crescimento populacional explosivo. Israel está tentando abrigar um milhão de imigrantes vindos da antiga União Soviética. A população da Jordânia vai dobrar em 20 anos e a da Síria em 18.

Israel e Jordânia têm quantidades semelhantes de terras cultivadas (cerca de 4.000 km2) e de população (cerca de 5,5 milhões de habitantes). Israel irriga 42% de suas terras cultivadas, enquanto a Jordânia irriga, com metade do mesmo volume de água, apenas 16%. As expectativas de um maior crescimento econômico da Jordânia teriam um grande impacto no uso da água, mesmo se a população não estivesse crescendo; o consumo de Israel já excede o seu suprimento de água doce renovável.

O sonho palestino de uma Cisjordânia independente já seria difícil o bastante se fosse apenas uma questão de terras, idioma e religião. De 25 a 40% do abastecimento de água doce de Israel vem de um aqüífero localizado em subsolo da Cisjordânia – as terras ocupadas por Israel após a guerra de 1967. Durante sua ocupação, Israel tem feito sérias restrições ao volume de água que os árabes da Cisjordânia podem bombear. Todavia, Israel tem superutilizado o aqüífero para uso próprio.

Israel também ocupa as colinas de Golan, uma parte da Síria. O controle dessa área dá a Israel acesso às encostas que drenam água para o rio Yarmük. Esse é o último rio inalterado que deságua no mar da Galiléia, definindo a fronteira entre Síria e Jordânia. O mar da Galiléia é a principal fonte de águas superficiais de Israel e dele parte uma rede de canais e dutos, o aqueduto Kinneret-Negev, levando água para o sul. A Síria e a Jordânia têm planos de represar o Yarmük, em Maqarin. Israel já anunciou que destruirá o reservatório, caso seja construído, temendo que ele reduza o volume de água que Israel pode extrair do mar da Galiléia. O belicoso Comitê dos Moradores de Golan, armado com brochuras em inglês e endereço eletrônico, deixa clara sua posição em relação ao território ocupado: `Não há lugar para negociação territorial… Golan controla 30% dos recursos hídricos de Israel´.’ – Stuart Pimm (2005, p. 129-130).

Legado de bombas, minas etc.

Trocando em miúdos, os conflitos no Oriente Médio – como, de resto, em qualquer lugar do mundo – têm causas materiais. Nesse caso, as causas são, ao menos em parte, ecológicas. Na verdade, há quem imagine que, em função da deterioração crescente no estado dos recursos naturais, esse tipo de disputa (isto é, conflitos bélicos pelo acesso a fontes de água e outros recursos vitais) venha a ser ainda mais freqüente em futuro próximo.

Além da perda absurda de vidas humanas, o legado das guerras é insano também por outros motivos. É o caso das doses elevadas de desperdício e deterioração de recursos naturais. Além de um país depauperado, os sobreviventes que após o conflito voltam a morar em zonas de guerra herdam uma paisagem degradada, hostil e quase sempre perigosa.

A Segunda Guerra (1939-1945), por exemplo, terminou há mais de 60 anos. Ainda hoje, no entanto, há riscos para quem mora em antigas zonas de guerra. Esse é o caso de uma parcela da população alemã, de acordo com matéria recentemente publicada pela revista Der Spiegel [ver matéria ‘The lethal legacy of World War II‘, de David Crossland, publicada na versão eletrônica da revista alemã Der Spiegel em 14/10/2008 (acesso em outubro de 2008)].

O legado que a população alemã herdou dos tempos da guerra inclui uma infinidade de artefatos bélicos não-detonados (bombas, minas etc.) que continuam encravados, enterrados ou de algum outro modo escondidos em áreas habitadas daquele país. Trata-se de um legado não só potencialmente letal, mas de uma ameaça que se torna mais perigosa a cada dia, pois com a deterioração dos artefatos os riscos de acidente aumentam.

‘Semear’ a fome

Além disso, em algumas regiões da antiga Alemanha Oriental há uma herança macabra adicional: restos de artefatos usados em seções de treinamento pelas tropas da antiga União Soviética. Na partilha pós-guerra, a ex-URSS ficou com a parte oriental do território alemão, ocupando-o militarmente até a queda histórica do Muro de Berlim, em novembro de 1989. As autoridades alemãs têm dedicado esforços para localizar e neutralizar esses artefatos, mas isso ainda não foi suficiente para acabar com o problema. Em todo caso, a Alemanha é um país rico e dinheiro e pessoal deverão continuar sendo alocados até que um nível zero de risco – ou ao menos algo socialmente aceitável – seja alcançado. [Localizar e neutralizar esses artefatos custa caro. De acordo com a mesma matéria mencionada na nota anterior, uma equipe de aproximadamente 70 técnicos recolheu, entre 1991 e 2007, nas proximidades de Berlim, quase 11 mil toneladas de munição. Custo da operação: 259 milhões de euros].

Algo bem diferente ocorre em países pobres. Esse é o caso, por exemplo, do Vietnã, país igualmente populoso e que também foi palco de guerra. Os danos ambientais causados diretamente pelas forças norte-americanas entre 1964 e 1973, durante a chamada guerra do Vietnã, ainda não foram devidamente sanados ou reparados. Durante a guerra, mais de 20 milhões de galões de herbicidas – incluindo os famigerados ‘agente laranja’ e ‘agente azul’ – foram despejados pelos norte-americanos. O objetivo era não só revelar a posição de alvos militares, mas também destruir as áreas utilizadas para cultivo de alimentos – isto é, ‘semear’ a fome, tentando inclusive jogar os camponeses contra o governo.

Um sonho distante

A aplicação repetida de venenos químicos sobre uma área limitada terminou erradicando por completo a vegetação local. Com o tempo, certos habitats foram tomados por plantas invasoras, algumas das quais prosperaram e se estabeleceram, sendo facilmente encontradas nos dias atuais. Em muitos lugares, a vegetação arbórea nativa ainda não se restabeleceu. Além de efeitos diretos e indiretos dos desfolhantes químicos, cerca de 14 milhões de toneladas de bombas foram despejadas sobre o Vietnã e países vizinhos (Laos e Camboja), produzindo entre 10 e 15 milhões de crateras de médio e grande porte [ver Sterling, E. J.; Hurley, M. M. & Minh, L. D. 2006. Vietnam: a natural history. New Haven, Yale University Press]. Assim, embora as tropas norte-americanas tenham batido em retirada há mais de 30 anos, os efeitos dos desfolhantes químicos e das bombas despejadas por elas podem ser vistos ainda hoje.

O Vietnã tem um rico patrimônio biológico. Com aproximadamente 332 mil quilômetros quadrados de área territorial (pouco menor do que o Maranhão), o país abriga comunidades biológicas particularmente valiosas, incluindo uma mistura incomum de espécies de regiões tropicais e temperadas. Toda essa biodiversidade, no entanto, só começou a ser estudada em detalhes nos últimos anos. Na década de 1990, por exemplo, um gênero inteiramente novo de mamífero ungulado (pseudoryx) foi encontrado em florestas de uma região montanhosa do país. Todavia, ao contrário do que se passou na Alemanha após o fim da II Guerra e, mais recentemente, após a queda do Muro de Berlim, a restauração plena do Vietnã – o que incluiria a restauração de seus habitats naturais – ainda é um sonho distante.

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Biólogo, autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003) e A curva de Keeling e outros processos invisíveis que afetam a vida na Terra (2006)