Suspendendo considerações mais profundas sobre a qualidade do entretenimento de programas como o Big Brother Brasil, e sentindo-me autorizado a comentar, a partir desta suspensão, parte da dinâmica deste reality show, noto que sua principal atração, o grupo humano artificialmente constituído e submetido à convivência, perde pouco a pouco – ou programa a programa – as características naturais de um grupo, assumindo mais a feição de um mero ajuntamento de individualidades herméticas.
Com efeito, se nas primeiras edições a presença de regras claras e imutáveis funcionava dentro da ‘casa’ como referência válida para a intersubjetivação, isto é, para a constituição de relações que, apesar de precárias, possuíam alguma estabilidade, nas últimas o que se vê é a tentativa de potencializar o show em detrimento da reality; portanto, em detrimento do interesse natural que os grupos humanos despertam nos grupos humanos.
Fazem isto confiando no poder midiático alcançado pelo programa que, iludido por uma fantasia de onipotência, dá fim ao regime de regras estáveis, instaurando deste modo a impermanência dos parâmetros normativos, o que gera um processo radical de emulação e impermeabilização dos espíritos. Num tal ambiente, as pessoas, isoladas, não se agrupam ou consolidam posições, mas apenas se esbarram.
Todos contra todos
Antes, os grupos no Big Brother se formavam encontrando formas de driblar o caráter dissolvente das regras em vigor, alcançando assim uma estabilidade que tornava possível uma convivência e uma rivalidade naturais. Tal estabilidade deixava clara a existência de uma ética subjacente, própria ao grupo e efetivada por condutas implícitas. Contrapondo-se a ela, entrava em cena o profético apresentador que denunciava esses implícitos como sem sentido, dispensáveis ou autoritários, e o fazia com tanto mais força quanto mais fortes se tornavam. De modo que um ou outro participante, encorajado pelo ‘Bial’, terminava por romper o pacto silencioso, incendiando o convívio. O preço pago era alto: o grupo o excluía, julgava e condenava ao ‘paredão’. Condenação não necessariamente injusta, mas coerente com o código implícito determinado pela maioria – código democrático, portanto.
Mas como a democracia é a única forma de governo autorizada a julgar a democracia, o ‘povo’ fazia aí a sua parte, obrigando os julgadores a sentirem o peso daquilo que eram: a maioria. Assim julgados, os integrantes do grupo eram levados a reavaliar e, às vezes, corrigir sua conduta.
Havia, assim, e nos primeiros programas, uma dinâmica e um conflito até certo ponto naturais entre indivíduo e coletividade. A estratégia usada pelo programa contra as coligações era legítima, porquanto as regras e as demais intervenções intentavam reforçar o individualismo na medida da opressão do coletivismo, não dando a ele, individualismo, o poder esmagador que tem hoje. Com efeito, seu poder hoje é tão notável, que ninguém mais quer ser ‘grupo’, todos querem ser indivíduos heróicos, capazes de lutar e serem emparedados em nome de sua alentada ‘fortaleza’ interior. Mas lutar contra o quê, se não há maiorias homogêneas contrapondo-se? Não à toa se observa, pateticamente, a preocupação de cada participante em denunciar a presença de um grupo que o oprime. Resultado: é a guerra de todos contra todos, como a entendia Hobbes.
Dramas mais convincentes
Impedidos de produzirem um grupo legítimo, não conseguem, por sua vez, produzir um herói legítimo. Se antes ganhava o programa aquele sujeito capaz de superar seus dramas e viver uma epopeia televisiva, hoje não se sabe bem por que ou como ganham os que ganham. Com efeito, não se veem mais dramas ou epopéias – há somente uma comédia pastelão: entretenimento vazio.
Pois bem. Considerando que o caráter épico ou histórico da existência humana se desenvolveu sobre os dramas e tragédias da vida privada, podemos dizer que havia no Big Brother, apesar do histrionismo próprio ao programa, um quê de humanidade e civilização sadiamente desenvolvido, resistente à onda que hoje tende a ‘avatarizar’ os seres humanos, avaliando-os segundo as próteses tecnológicas que são capazes de possuir e manejar.
Uma evidência do contrário, ou seja, de que antes o humano terminava por sobrepujar e singularizar o tecnológico, materializava-se no fato de os integrantes da ‘nave’ chegarem a nitidamente esquecer, aqui e ali, a existência de câmeras, microfones e presenças outras que não a de suas próprias neuroses. Seus dramas (apaixonantes) eram em regra muito mais convincentes do que os observados agora.
Um bando de espantalhos
O que se vê hoje, através das incansáveis intervenções do big fone, das divisões de todo tipo, dos quartos secretos, dos paredões surpresa etc., é a impossibilidade de os participantes esquecerem que estão sendo filmados e que fazem parte de um show, o que acarreta um extraordinário aumento do histrionismo, caracterizado pelo artificialismo geral das condutas, agora apenas performáticas. Se antes o programa conseguia, ao menos em alguns momentos sensíveis, reproduzir a típica estrutura dos conflitos humanos, hoje ele nada reproduz: é, simplesmente, desagregador, mesmo estúpido.
Talvez o Big Boss tenha considerado a estratégia anterior demasiadamente humana, coisa que permitia aos participantes, não de direito, não conscientemente, mas de fato, controlar o tempo dos acontecimentos. Mas a humanidade foi neutralizada e atualmente os sujeitos no Big Brother sequer têm condições de constituir algo muito natural num grupo humano: tempo próprio, cultura comum. De fato, aos integrantes da ‘casa’ não é mais dado o direito de lutarem juntos contra a arbitrariedade do ‘seu mundo’, mutilação que os escraviza ao cada-um-por-si da ausência de regras e os impede, por isso, de consolidar qualquer união.
Sendo um bando de espantalhos, parecem reproduzir à perfeição a sociedade midiática de hoje. Mas não, eles não a reproduzem como pensam, e por isso não merecem a audiência que, por inércia, ainda têm. Não é por acaso que anunciam esta como a última edição do programa. Será?
******
Psicólogo, Rio de Janeiro, RJ