Não é novidade o fato de que, há muito tempo, a comunidade negra vem ocupando um espaço pífio no cenário da teledramaturgia brasileira, seja em relação à quantidade de representantes atuando, seja no que tange à qualidade dos papéis que recebe. Em grande parte, as novelas têm seu elenco composto predominantemente por indivíduos que se assemelham com o fenótipo branco, sobretudo os atores principais, que, normalmente, são escalados de acordo com os moldes estéticos europeus de nossa sociedade. Portanto, um negro como protagonista de novela sempre soou e ainda soa, no mínimo, como estranho.
Ultimamente, a Rede Globo de Televisão, grande potência em produção e exibição de novelas, vem, ainda que duvidosamente, tentando apresentar personagens negros de uma forma, digamos, mais simpática ao telespectador. O caso mais recente é o da inserção do ator carioca Micael Borges no seriado Malhação, como protagonista. O jovem, que possui traços nitidamente negros e indígenas, é integrante do projeto de arte e cultura ‘Nós do Morro’, tem 20 anos e mora no Vidigal, bairro periférico do Rio de Janeiro. Apesar de fazer teatro desde os sete anos de idade, o ator só conseguia até então atuar na Globo em pequenas participações, principalmente no extinto Linha Direta. Qualquer semelhança com o estereótipo que põe o negro intimamente ligado ao crime, neste caso, não é mera coincidência.
Lugar de nordestino é no Nordeste
Micael Borges, em entrevista ao jornal O Dia Online, em novembro do ano passado, afirmou que o fato de ter sido escolhido para integrar o seriado, após algumas tentativas anteriores frustradas, já como intérprete principal, se deu por causa do que chama de ‘efeito Obama’, referindo-se à eleição do candidato negro, Barack Obama, para presidente dos Estados Unidos. Se houve influência de tal efeito, é algo a se investigar. Entretanto, apesar de ter ele, talvez, possibilitado a entrada do ator como protagonista no seriado, o ‘fenômeno’ ainda não foi suficiente para apagar a estratégia de negociação que a Globo parece fazer quando reserva certos papéis aos atores negros.
Chamo de estratégia de negociação o modo como a empresa apresenta tais personagens na ficção. O ator negro é inserido nas telas, mas, para compensar o sacrifício politicamente correto, seu personagem é carregado de vários arquétipos preconceituosos, cristalizados no imaginário brasileiro. Em Malhação, o supracitado ator interpreta Luciano Ribeiro, um pescador pobre que, inicialmente, vivia no Ceará. Ao chegar à cidade do Rio de Janeiro, o rapaz é logo roubado, sendo obrigado a viver de empregos esporádicos e trabalhar como faxineiro em um shopping. Por fim, acaba por ingressar na carreira de modelo.
A Globo fez questão de ressaltar ‘as diferenças’ desse personagem em relação aos antigos protagonistas e nesse ofício obteve um êxito cruel. Luciano funciona como a figura típica do habitante do Nordeste ideologicamente formada. Afrodescendente, pobre por natureza, que não consegue um emprego digno nas capitais, possui um gosto duvidoso para se vestir e é passível de sofrer qualquer tipo de violência por causa de sua displicência nata. Não poderia faltar, também, o estereótipo da ‘beleza exótica’ do corpo negro e deste como objeto sexual, já que o rapaz manteve um ‘caso’ com sua patroa, que o permitiu, enfim, ascender socioeconomicamente. Vale ressaltar que o personagem, nesses últimos capítulos, depois de diversos contratempos, voltou para a cidade onde vivia, no Ceará. Um ‘de volta para a minha terra’ global, mostrando que lugar de nordestino é no Nordeste e que, de lá, ele jamais deve sair. Uma bela negociação da Globo, não?
Para servir de objeto, bastou a escravidão
Vários casos parecidos podem ser observados nas tramas globais. Em 2004, por exemplo, a atriz Taís Araújo também foi vítima da estratégia de negociação, ainda que de uma forma velada, ao ser a primeira negra a protagonizar uma novela das sete, interpretando a personagem Preta, de Da cor do pecado. O nome da trama, que é bastante problemático, dentre outros fatores, sugere que a cor negra está ligada ao pecado, leia-se, sexo. A própria música de abertura, homônima, composta por Bororó, fala de uma tal ‘maldade da raça’, em uma clara insinuação de que mulher negra é sinônimo de sexualidade exacerbada.
Outro exemplo ocorreu na recém exibida novela A Favorita. Havia uma família negra no núcleo rico do folhetim. Contudo, o patriarca, Romildo Rosa (Milton Gonçalves), era um político corrupto, e seus filhos – Alicia (Taís Araújo), uma artista plástica falida, e Didu (Fabrício Boliveira), um alcoólatra – faziam a composição do clã. Portanto, percebe-se que, em se tratando de Globo, nenhuma inclusão é assim tão bem intencionada e inocente.
Será que não é mesmo possível que afrodescendentes circulem livremente pelas novelas sem que pesem sobre suas costas os resquícios de um pensamento colonial que parece estar cada vez mais presente em nosso imaginário? Seria difícil obrigar os brasileiros a rever seus conceitos, ao terem que assistir diariamente a um galã negro? Ou será que ‘galã’ e ‘negro’ são dois termos contraditórios? O que faremos com grandes atores como Milton Gonçalves, Ruth de Souza, Léa Garcia, Zezé Mota, Antônio Pitanga e Neusa Borges? Os relegaremos a interpretar sempre os coadjuvantes, ou, quem sabe, os figurantes? É complicado falar em busca pela diversidade, valorização de minorias ou inclusão destas nas instâncias de poder, quando representamos midiaticamente estes indivíduos de forma deturpada e pejorativa.
Não adianta ter um negro como protagonista de novela se ele vai continuar sendo símbolo de reprodução dos mesmos discursos, dos mesmos preconceitos, das mesmas convenções discriminatórias. Disso não precisam os movimentos que militam a favor da reafirmação identitária dos descendentes da África no Brasil. Agindo dessa forma, a Globo só consegue aumentar ainda mais as idéias conformadas, nas quais estão contidas as garras do status quo que determina a acomodação diante dos fatos que nos cercam. Se for para usufruir do talento do ator afrodescendente, que seja de uma forma digna, não negociada, pois para servir como objeto, já nos bastou o período escravocrata.
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Estudante de Jornalismo, Faculdade 2 de Julho, Salvador, BA