A televisão é um meio de comunicação que atinge milhões de brasileiros, sendo que grande parte deste coeficiente a utiliza como única fonte de informação. A Globo, líder de audiência no país, empenha toda sua competência na transformação da cultura nacional em mercadoria, reafirmando constantemente sua imagem de emissora socialmente responsável. Uma vez que a indústria necessita de constante diferenciação, seus produtos televisivos ora utilizam gramáticas esteticamente diferenciadas (como nas minissériesHoje é Dia de Maria,A Pedra e o Reino ouCapitu), ora investem no cunho educativo ou ecológico, realizando parcerias com escolas e universidades e produzindo programas como oTelecurso. Ao mesmo tempo em que inova atuando em áreas adjacentes ao entretenimento, reforça seu compromisso com o mercado publicitário.
Inspirada nos folhetins de publicação periódica e herdeira do rádio, a telenovela desenvolveu narrativa própria na Globo, conquistando ao longo dos anos forte apelo popular e facilitando a disseminação de conteúdos ideológicos. Enquanto produto da indústria cultural televisiva, seus títulos registram audiência decrescente em comparação aos anos anteriores, mas, ainda assim, consegue reunir diariamente 30 milhões de brasileiros na frente do televisor. Quando se equipara o investimento da Globo no âmbito social ao alcance e à dimensão de seu negócio, os avanços são pífios. Graças ao emprego errôneo demerchandising social, a Globo pouco tem contribuído para o desenvolvimento da diversidade no país. Sua contrapartida nas novelas é insuficiente e não soma para a real mobilização social. Seus valores e ideologia, sempre difundidos, seguem um sistema próprio, com regras e códigos delineados sob a lógica do capitalismo – sistema econômico, político e cultural que molda, de acordo com seus interesses, discursos hegemonicamente naturalizados.
Reação de polêmica e críticas
Diversos percalços apontam que omerchandising social empregado pela Globo precisa ser melhor desenvolvido, especialmente quando inserido nas telenovelas. Entre as relações do Estado e do mercado, a sociedade pode e deve protestar. Nesta direção, mesmo que passados despercebidos, alguns exemplos podem ser citados. Manoel Carlos, no ar comViver a Vida, é o mais descomedido dos autores da Globo – mas também o que mais projeta este filão social. O autor passa longe da veia frenética de Gilberto Braga, especializado em anônimos milionários e alpinistas sociais com sede de vingança; ou das sagas italianas e desavenças rurais de Benedito Ruy Barbosa. Ao som de muita bossa nova, seus folhetins abrigam a sociedade carioca residente do Leblon. Recentemente, partiu do autor a tentativa de incumbir uma menina de oito anos ao papel de vilã. Trata-se da personagem Rafaela (Klara Castanho), que precisou da intervenção do Ministério Público, através de notificação ao autor, para que rumos mais brandos fossem oferecidos à sua personagem. A intenção foi de evitar manifestações de hostilidade por parte do público, já que, nesta idade, uma criança não comporta discernimento e formação psicossocial para separar ficção da realidade.
Ao abordar a pandemia da Aids emPáginas da Vida (2006), a imagem de um personagem doente em estado terminal – magro, abatido e com manchas na pele – foi suficiente para que o médico Diogo (Marcos Paulo) o diagnosticasse como soropositivo. Descuido que alimenta o preconceito e não condiz com a conjuntura atual da doença. A reação não tardou: gerou polêmica entre ativistas, críticas do Ministério da Saúde, da Sociedade Brasileira de Infectologia e de organizações não-governamentais (ONGs) que amparam pessoas que vivem com HIV/Aids. Ainda, eliminou a possibilidade de aprofundamento, difundindo a doença entre os menos esclarecidos e até mesmo enfraquecendo o chamamento à realização do exame anti-HIV, cuja testagem é confidencial e gratuita no Brasil.
Acertos resultam importantes
Outro autor, Aguinaldo Silva também escorregou num passado recente. Com alto grau de carga ideológica em seus diversos núcleos,Duas Caras (2008), sua última novela, questionou pejorativamente o personagem Benoliel (Armando Babaioff), pelo fato de trabalhar como autônomo, sem carteira assinada. Ainda que o emprego informal seja sinônimo de barreiras ao crescimento do país e carência de assistencialismo ao trabalhador, um estudo realizado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostrou que 52% dos brasileiros, desfavoravelmente ignorados pela novela, encontram-se nesta condição.
No entanto, acertos no âmbito domerchandising social também precisam ser considerados – como a rápida aprovação do estatuto do idoso junto ao Congresso Nacional, apósMulheres Apaixonadas (2003) exibir cenas de uma neta que destratava seus avós; ou o fato de mais de 60 crianças terem sido localizadas a partir da divulgação de depoimentos de mães de desaparecidos emExplode Coração (1996). O maior dos feitos foi o capítulo em que a personagem Camila (Carolina Dieckmann), de Laços de Família (2000), teve seu cabelo raspado por conta da leucemia. O país entrou em comoção e a audiência subiu: dentre todos os televisores ligados, 79% estavam sintonizados na Globo. A partir da ação, o número de cadastrados no Registro Brasileiro de Doadores Voluntários de Medula Óssea (Redome) saltou para 900 por mês, quando antes registrava apenas 20. Resultados importantes, sem dúvida, ainda que via de regra seus efeitos não se ampliem muito além da duração da novela.
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Respectivamente, professor titular no programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos; doutorando em Ciências da Comunicação na mesma instituição