QUEM TE VIU…
Tal qual as novelas globais, a TV Cultura já teve melhores dias. Da Globo há que se destacar, principalmente, a perda de Dias Gomes, que com sua picardia elevava o nível das produções com títulos como O bem-amado e Roque Santeiro. Submetido nos últimos anos a dissabores e acertos de um escrete mais limitado em imaginação do que em número, o público se diverte ou é castigado por enredos sentimentalóides, sob o álibi de causas assistencialistas, e estruturalmente acríticos, que unem o raso ao rocambolesco, principalmente na faixa das 21h. O universo da moda, hipertrofiado, foi tema recente de Belíssima, ensinando que só as realmente belas alcançam o topo: as nem tanto podem cair nas garras do tráfico internacional de mulheres. América usou uma música que Caetano compôs em louvor à latinidade (‘Soy loco por ti, América’) para homenagear tudo o que lhe é antípoda.
Essa foi a assinatura da mentalidade tão obviamente colonizada e midcult de autores televisuais, que pulula no texto de Manoel Carlos quando seus personagens planejam pateticamente passar lua-de-mel em Paris, Natal em Nova York, estudar inglês em Londres ou história da arte em Amsterdã. Tudo embalado por melodias estadunidenses de má qualidade, em nome de uma indústria fonográfica globalizada (o que consiste em, via mídia, tentar estender ao campo cultural a dependência econômica e tecnológica).
Em se tratando da Globo, nada de novo. A subserviência estética e ideológica aos EUA, inclusive em seus telejornais, é percebida por qualquer observador mais atento; não é preciso ser crítico de mídia para constatá-la. Há, claro, umas centelhas no ar, como na faixa das 7, a das telechanchadas, quando o deboche é autorizado e têm-se personagens como a suburbana que sacoleja ao som do funk enquanto alardeia ser estilista internacional. A surpresa é encontrar na TV Cultura reverberações de uma linha editorial que tem compromissos com o ‘mundinho fashion’, com a rota Miami-Projac: os valores nova-iorquinos seriam, sob esta ótica, universais, e os da emissora hegemônica, nacionais.
De passagem assisti no programa Vitrine, reprise de domingo (15/10/06), a duas matérias em seqüência: uma sobre as atrações de uma loja de brinquedos em Manhattan, outra sobre crianças, modelos-mirins que desfilavam e tinham a apresentadora Angélica por inspiração (entrevista com ela). Confesso que não via o programa há muito tempo. Mas me lembro de uma longínqua fase dele com Ernesto Varela/Marcelo Tas, e de uma outra, ainda mais distante, com Maria Cristina Poli, quando se dedicava a questões profissionais de jornalismo e era útil a meus alunos de graduação.
É evidente que o Vitrine passou por reformulação radical, provavelmente buscando ampliar a audiência. Mas, em se tratando de uma produção da TV Cultura, não vejo por que não caberia, apenas para ficar no âmbito da moda, setor cultural importante, pauta do tipo da que ganhou, no mesmo dia, o seguinte título do Jornal da Tarde: ‘Bijuterias de chita ganham mercado internacional’.
‘O ponto é simples, como o que fazemos em uma bainha, em uma fralda. Não tem segredo. Mas tem magia.’ Assim a presidente da Associação dos Cortiços do Centro (ACC) de Santos (SP) definiu o trabalho que está transformando a vida das mulheres da região. Envolvidas há cerca de 6 meses no projeto Raízes Corticeiras, as novas artesãs descobriram uma forma de gerar renda, resgatar história e cultura (…). O projeto (…) orienta as artesãs sobre aspectos gerenciais, estéticos e comerciais. O resultado está nas bijuterias de chita (tecido colorido, tipicamente brasileiro) e de PET (material usado para fabricação de garrafas plásticas) que estão conquistando o mercado internacional. Os colares, brincos e pulseiras produzidos artesanalmente pelas mulheres da ACC já foram vendidos no México, Canadá, Suíça e acabam de embarcar para Boston, nos Estados Unidos. Em dezembro, as peças farão parte da feira mundial promovida pelo Berkana Institute – uma fundação de pesquisas científicas e educacionais que se dedica à descoberta de novas formas de organização. O evento tem público estimado de 10 mil pessoas. (Reportagem de Luanda Nera.)
Resta supor que, assim como a Globo, a Cultura não colocaria bijuterias de plástico e chita em vitrines de horário nobre; provavelmente a confinaria a produções comunitárias, destas situadas, na grade da programação, bem de manhãzinha, quando quase todos dormem.
Embora maior que em outros tempos, esse alinhamento ao comercial não se estende a todo o programa nem a toda a programação da Cultura – e o comprovam a qualidade de suas produções infantis e a retransmissão do OI. A própria grade da Globo é diversificada o suficiente para fazê-la escapar de uma crítica generalizante. No Espírito Santo, por exemplo, o Famosos, exibido para todo o país nos sábados à tarde, é substituído na afiliada TV Gazeta pelo interessante Em movimento, programa regional de variedades produzido por uma equipe jovem que trata com grande versatilidade questões de cultura, comportamento, acontecimentos, festas populares em bairros e interior do estado. Uma alternativa inteligente e na contramão das tendências globalizantes. Que, a meu ver, deveriam ser os princípios mais presentes numa TV pública.
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Jornalista, professora da Ufes, pós-doutoranda em Ciências da Comunicação na USP, integrante da Renoi