Tuesday, 17 de September de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1305

Corte de verbas na TV Cultura expõe desafios históricos da comunicação pública brasileira

(Imagem de Pexels por Pixabay)

Nos últimos dias, a TV Cultura de São Paulo virou notícia, mas não pela comemoração dos seus 55 anos de existência. Em meio a cortes de verbas, a emissora anunciou a suspensão de pelo menos oito programas que estavam em produção e que iriam ao ar como parte do seu aniversário. A saída, pelo menos por enquanto, é recorrer a reprises.

“Saída” é apenas modo de dizer para nos referirmos a uma situação tão séria e preocupante. Isso porque a crise da TV Cultura é a crise que a TV pública brasileira enfrenta desde sempre e a deixa constantemente na berlinda.

Diante de um cenário que preocupa, algumas questões vitais para a radiodifusão considerada pública vêm à tona e precisam ser debatidas, entre elas o financiamento e o modelo de gestão dos canais que compõem esse espectro da comunicação no Brasil.

Quando se fala em TV de caráter público, não se considera apenas um veículo cuja programação é desprovida de interesses comerciais e de briga por audiência. Esse critério é apenas um dos que tornam público um canal de televisão ou de rádio. Seu significado vai além e abrange outra variável relevante: quem a financia. É a sociedade – como no caso do BBC britânica – ou é o ente estatal – a exemplo da TV Cultura e da TV Brasil/EBC?

Quem sustenta a comunicação pública?

O último exemplo é proposital, uma vez que a criação da TV Brasil é considerada um marco na história do campo da comunicação pública. Ela nasceu de uma reestruturação da antiga Radiobrás, rede de comunicação do governo federal que reunia canais educativos tradicionais, como a TV Educativa do Rio de Janeiro (TVE), a Agência Brasil e a Rádio Nacional. Desde 2008, tais veículos (incluindo a TV Brasil) integram a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), criada pela lei federal 11.652, durante o segundo mandato do presidente Lula.

A norma instituiu os princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública explorados pelo Poder Executivo ou outorgados a entidades de sua administração indireta, e o seu financiamento tem fontes relativamente diversas: orçamento da União, doações, serviços prestados a terceiros e a órgãos do governo, entre outros.

O surgimento da EBC é visto como um divisor de águas para a comunicação não comercial no Brasil, país que nunca deu a prioridade que esse segmento merece, em contraste com o hegemônico setor privado/comercial de radiodifusão. No entanto, tendo em vista a ligação umbilical que essa rede dita pública mantém com o poder estatal, os riscos que comprometem sua plena existência e seus objetivos não podem ser menosprezados, pelo contrário.

Ter um orçamento, em grande parte oriundo do governo federal para manter o quadro de funcionários, toda a estrutura física e a produção de conteúdo é um risco constante, deixando toda essa máquina de comunicação profundamente suscetível ao (des)interesse dos governantes de plantão. Inclusive, desde o seu nascimento até 2013, a EBC ainda não havia recebido recursos de uma de suas principais fontes, o Fistel (Fundo de Fiscalização das Telecomunicações), por meio da Contribuição para o Fomento à Radiodifusão Pública. E mesmo após os recursos começarem a cair na conta, os valores não foram depositados na sua totalidade, mas apenas parte do rendimento gerado pelo Fistel (ver mais detalhes sobre o assunto aqui).

No caso da Cultura, o canal de TV é custeado por “dotações orçamentárias legalmente estabelecidas e recursos próprios obtidos junto à iniciativa privada”, conforme está brevemente exposto em seu sítio oficial na internet. O orçamento da emissora, de acordo com informações divulgadas na imprensa, aumentou 10% em relação a 2023, o que, para o governo paulista, não justificaria a medida recentemente adotada pela emissora. Como se vê, mais uma vez temos um caso de dependência em relação a um ente estatal.

Gestão participativa: menos Estado, mais público

Outra questão primordial que obrigatoriamente entra nesse debate da comunicação considerada pública tem a ver com quem a administra, ou seja, a sua gestão. No caso da TV Cultura, é a Fundação Padre Anchieta, do governo do Estado de São Paulo, a mantenedora da emissora.

Já a lei que criou a EBC instituiu o Conselho Curador, mecanismo inovador importante que prevê a participação direta da sociedade civil na gestão da programação ao lado de representantes do governo federal, da academia e de trabalhadores da empresa.

Mas é preciso frisar: a lei que implementou a gestão democrática na EBC é a mesma que colocou a empresa sob a tutela da Secretaria de Comunicação Social (Secom), órgão da Presidência da República responsável pelas ações de comunicação e assessoria de imprensa do governo federal, e não de uma instância independente do aparelho estatal.

É inegável o avanço representado tanto pela criação da EBC quanto pelo Conselho Curador dessa rede de comunicação. Mas inegável também é o fato de que estar ligada diretamente a um órgão do Poder Executivo fragiliza a empresa em suas pretensões de fazer uma comunicação de fato pública, com foco no interesse da sociedade, considerada em sua pluralidade e diversidade de perspectivas e ideias.

Isso é tão relevante que, após o impeachment de Dilma Rousseff, a EBC sofreu sucessivos ataques do governo Temer, que, logo após o impedimento de sua antecessora, destituiu o presidente da empresa, violando a lei. Temer ainda obteve êxito com uma medida provisória que resultou no fim do Conselho Curador e do mandato do presidente. A partir daí, decisões editoriais (referentes ao conteúdo dos veículos da rede) ficaram a cargo do Conselho de Administração –dominado por indicados do Poder Executivo –, cujo desenho institucional previa um Comitê Editorial e de Programação com participação da sociedade civil. Segundo estudos recentes, até o ano de 2020, o Comitê ainda não havia sido designado.

Obviamente que insegurança semelhante também viveu a TV Cultura, que ao longo de sua trajetória passou por diversos desafios de âmbito financeiro, sempre refém da (falta de) vontade política de quem ocupa o Palácio dos Bandeirantes.

Ainda que seja reconhecida por produções aclamadas e premiadas, que a colocaram num patamar diferenciado quanto à qualidade de programação – a exemplo de Castelo Rá Tim Bum, Turma do Cocoricó, Mundo da Lua, Confissões de Adolescente, além do respeitado programa de entrevistas Roda Vida –, a Cultura não conseguiu converter todo esse potencial criativo e inovador em uma conquista perene de audiência (tema tão caro à TV dita pública, diga-se de passagem!) e menos ainda logrou êxito em convencer seus gestores a investirem em comunicação pública como se deve. No quesito audiência, a exceção fica por conta da programação infantil, que por vezes deixa a TV Cultura entre as quatro maiores.

Hegemonia comercial como obstáculo à TV pública

Além das questões evidenciadas anteriormente, o amplo domínio do setor privado-comercial de mídia no Brasil também traz impactos ao pleno desenvolvimento da comunicação pública, contribuindo diretamente para a posição subalterna que esse segmento ocupa no campo da radiodifusão.

Mesmo que prevista na Constituição Federal de 1988, a complementaridade dos sistemas público, privado e estatal de comunicação jamais existiu de fato. O que se vê, na prática, é uma hegemonia das redes controladas por famílias, denominações religiosas cristãs e grupos empresariais e políticos, seja em âmbito nacional e regional.

Um estudo de 2017 elaborado pelo Coletivo Intervozes, em parceria com a Ong Repórteres Sem Fronteiras, mostra que os quatro principais grupos de mídia do Brasil concentram uma audiência nacional que ultrapassa os 70% na TV aberta, com destaque para a Rede Globo de Televisão. Essa emissora costuma obter mais audiência que todas as principais concorrentes juntas, ainda que nos últimos anos venha sofrendo com sucessivas quedas de público se comparado aos índices exorbitantes de décadas passadas.

Fazer esse paralelo é importante se quisermos compreender a totalidade do contexto no qual a radiodifusão não comercial está inserida. Isso porque, de um lado, temos um setor altamente concentrado, com poucos grupos de mídia dominando o mercado de rádio e TV sem qualquer obstáculo (em que pese um arcabouço legal abarrotado de normas); e, de outro, um setor que ainda não conseguiu se desenvolver plenamente, seja por não estar entre as prioridades de uma política pública de comunicação (a qual não é nem nunca foi prioridade entre as políticas públicas), seja pela hegemonia privado-comercial sem limites que se estabeleceu no Brasil, principalmente a partir da redemocratização.

Sobre a TV Cultura: números

De acordo com informações do portal da TV Cultura, a Fundação Padre Anchieta mantém uma emissora de televisão de sinal aberto, a TV Cultura, e outra de TV a cabo por assinatura, a TV Rá-Tim-Bum; também possui duas emissoras de rádio, a Cultura AM e a FM.

Quanto à cobertura de sinal, segundo consta no site da Fundação Padre Anchieta, existe uma parceria com 393 emissoras – entre afiliadas, geradoras e retransmissoras – espalhadas nas cinco regiões do Brasil, além de 209 canais próprios no estado de São Paulo, chegando a mais de cinco mil municípios. Números que, infelizmente, não minimizam a atual situação de uma das emissoras de TV mais respeitadas do país.

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Vilson Vieira Junior é jornalista formado em Comunicação Social e mestre em Ciências Sociais, ambos pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). É autor de diversos artigos em sites como Observatório da Imprensa, Observatório do Direito à Comunicação (do Coletivo Intervozes) e na mídia local do ES.