Friday, 18 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1310

“Globo do Velho Testamento” e “Globo do Novo Testamento”: ambas contra as minorias sociais

(Imagem de Mohamed Hassan por Pixabay)

Nos círculos de extrema direita na internet, tem sido cada vez mais comum dividir a história da maior emissora de televisão do Brasil em duas grandes eras: “Globo do Velho Testamento” e “Globo do Novo Testamento”. Os mais metódicos apontam até o marco dessa transição: a morte do fundador da Globo, Roberto Marinho, em 2003. Nessa lógica, o SBT, com o recente falecimento de Silvio Santos, estaria indo na mesma direção.

A “Globo do Antigo Testamento” se refere ao período em que a emissora não era adepta do politicamente correto, negros eram representados negativamente em telenovelas e prevalecia o humor estilo Caseta & Planeta. Em suma, a Globo não era “mimizenta”. Racismo, homofobia ou machismo eram práticas naturalizadas. “Não existia esse negócio de bullying antigamente”, costumam dizer os saudosistas.

Em contrapartida, a “Globo do Novo Testamento”, segundo os devaneios da extrema direita, é sinônimo de “mimimi”, “lacração” e “marxismo cultural”. Diferentemente de outrora, agora há negros bem-sucedidas na programação, casais homoafetivos em novelas (corrompendo os valores da “família tradicional”) e os humorísticos politicamente incorretos não estão mais na grade (ao contrário dos “bons tempos”). A Globo virou “Globe” (em alusão aos pronomes neutros ou linguagem não binária).

Uma análise apressada – como já é costume nesta rede mundial de computadores – diria que, finalmente, a Globo deixou seu passado conservador e, se adaptando aos novos tempos, agora tem viés progressista. No entanto, como nos ensinou o filósofo contemporâneo Compadre Washington: “sabe de nada, inocente!”.

Desde sua fundação, em 1965, até o dia em que escrevo este texto, a Globo não alterou em nada seu principal foco: atender aos interesses do Deus mercado (representado, sob o aspecto geopolítico, pelo imperialismo estadunidense).

Essa maior presença de determinadas minorias na tela não tem nada de “representatividade”, como se diz por aí. É apenas demagogia com negros, mulheres ou homossexuais. Trata-se da adesão da Globo à chamada agenda woke (ou identitarismo), diretriz ideológica vinda diretamente do Partido Democrata dos Estados Unidos. Portanto, politicamente à direita, espectro ao qual a emissora sempre pertenceu (a não ser que você seja um tiozão do zap que acredite que a Globo é “comunista”).

Desse modo, é incentivada a divisão dos oprimidos. A “luta de classes” – motor da história e principal antagonismo no sistema capitalista, de acordo com Marx – é substituída por “identidades” (que surgem conforme as necessidades do mercado). Ações concretas dos trabalhadores dão lugar a medidas simbólicas e abstratas (como mudanças linguísticas).

Para a Globo (e, naturalmente, para o mercado) é interessante a presença de um ou dois negros nos telejornais, por exemplo, desde que a maioria continue em situações precárias e não se rebele. Lembrando o dito popular, o capital cede os anéis para não perder os dedos. Além disso, a presença de uma mulher, um indígena ou um homossexual em “espaços de poder” serve para legitimar o princípio da meritocracia (pois estão lá por terem se esforçado o suficiente; logo mereceram).

Se na “Globo do Velho Testamento” não havia tanta minoria contemplada, era porque isso não era interessante ao grande capital. Já na “Globo do Novo Testamento” o assunto é outro. Há necessidade de vender produtos para pele negra, turismo gay, roupas plus size e por aí vai.

Uma breve análise do histórico recente da “Globo do Novo Testamento” comprova que não há defesa alguma das minorias. Além de seguir de maneira fidedigna os ditames do imperialismo estadunidense (maior inimigo dos povos oprimidos do planeta), a emissora contribuiu para o golpe de 2016, que prejudicou principalmente os setores mais vulneráveis da população, e segue apoiando a política do sionismo na Palestina, regime que melhor representa os ideais supremacistas e racistas na atualidade.

Se os noticiários internacionais da “Globo do Novo Testamento” fossem realmente antirracistas, favoráveis às mulheres e em defesa das crianças, deveriam denunciar os crimes de Israel contra essas minorias sociais.

Assim, enquanto a “Globo do Velho Testamento” era explícita em demonstrar seu repúdio às minorias; a “Globo do Novo Testamento” possui uma linha mais sofisticada, oculta seus preconceitos sob o verniz do identitarismo (ao aceitar que só alguns integrantes de determinadas minorias cheguem ao topo). A ascensão individual garante que não haja libertação coletiva.

Também não deixa de ser inusitado constatar que, tanto os adeptos da “Globo do Velho Testamento” (extrema direita), quando os defensores da “Globo do Novo Testamento” (identitários), têm um ponto em comum: o autoritarismo. Ambos querem calar vozes contrárias, sendo os principais expoentes daquilo que conhecemos como cultura do cancelamento.

Não importa se você chamar a emissora da família Marinho de “Rede Goebbels”, “Globe”, “Vênus Platinada”, “Globo Lixo” ou “Rede Bobo”. Independentemente do “testamento” – novo ou velho – a Globo só defenderá os interesses de uma única “minoria” (“numérica”, e não “social”): aquele 1 % que controla a maior parte da riqueza produzida no mundo.

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Francisco Fernandes Ladeira é Doutor em Geografia pela Unicamp. Especialista em Jornalismo pela Faculdade Iguaçu.