Atualmente desenvolvo pesquisa de mestrado no Programa de Pós-graduação em Comunicação na Universidade Federal de Juiz de Fora (PPGCOM-UFJF), que investiga as ruínas e os rastros discursivos, cujas formas narrativas foram capazes de se entranhar pelas frestas dos discursos hegemônicos e escaparem ao seu controle, conseguindo, dessa maneira, o intuito de dizer o que fora proibido.
O percurso investigativo é construído a partir dos arquivos da memória institucional da ditadura civil-militar de 1964 no Brasil, analisando processos jurídico-militares perpetrados na Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar, na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. Dessa forma, foi possível resgatar, através das informações recolhidas em periódicos, processos jurídico-militares, relatórios das Comissões da Verdade no Brasil, e depoimentos cedidos à Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora, parte da história de resistência à ditadura civil-militar de 1964 no Brasil, por parte de militantes políticos na cidade, durante as décadas de 1960 e 1970, possibilitando a reconstrução de algumas narrativas preteridas, porquanto os acontecimentos narrados por estratégias alternativas de comunicação raramente apareceram na imprensa juiz-forana, especificamente nos jornais Diário Mercantil e Diário da Tarde.
A partir da investigação do manuscrito Até Sempre 3, apreendido com os presos políticos na Penitenciária de Linhares em abril de 1970, documentado no Processo 32/70, e dos jornais clandestinos que circularam em Juiz de Fora no fim da década de 1960, tais como O Porrete e Luta, documentados no Processo 5/69, foi possível identificar a resistência ao regime ditatorial.
O manuscrito Até Sempre 3 fora apreendido, em 2 de abril de 1970, pela força de segurança da Penitenciária de Linhares, e relata, de maneira talhante, o que ocorrera durante as 27 horas, entre os dias 19 e 20 de março de 1970, na sede da 4ª CJM, em razão do Processo 73/69, do interrogatório coletivo de 12 presos políticos, ligados ao Grupo Colina. O teor do manuscrito revela que os interrogados no processo negaram o conteúdo de seus interrogatórios anteriores, formulados sob tortura e coação, além de denunciarem os responsáveis pelas sevícias em diversas instituições militares.
Dois anos antes da apreensão desse manuscrito, alguns jovens estudantes articularam, em 1968, um grupo que se contrapunha ao regime ditatorial; para tanto, alugaram uma casa no bairro Santa Luzia e um quarto no bairro Borboleta, ambos na periferia da cidade. Nesses locais esses jovens editavam e guardavam os jornais clandestinos O Porrete e Luta, dentre outros. O jornal O Porrete fora escrito, editado e impresso por alguns estudantes pertencentes à União Juiz-Forana de Estudantes Secundaristas (UJES), entidade colocada na ilegalidade pela ditadura civil-militar. Já outros estudantes alugaram um quarto numa casa do bairro Borboleta, dizendo ao locatário que iriam confeccionar apostilas de cursinho pré-vestibular, mas utilizaram o imóvel para editarem o jornal Luta. No dia 18 de agosto de 1968, às 4h30, agentes da Polícia Federal fizeram uma operação na casa alugada no bairro Santa Luzia e prenderam todos os envolvidos na confecção desses jornais clandestinos e “subversivos”.
Posto isto, a pesquisa constatou que a imprensa juiz-forana, especificamente os jornais Diário Mercantil e Diário da Tarde, explorou o fato do golpe civil-militar ter se iniciado em Juiz de Fora, não obstante, esses mesmos jornais se calaram diante das atrocidades cometidas pelo regime ditatorial e não informaram aos seus leitores o que se passava nos porões da justiça e do exército. A pesquisa constatou que durante o desenrolar do processo dos jornais O Porrete e Luta, que durou um ano, o jornal Diário da Tarde fez apenas uma única menção ao caso, porém, anterior ao processo jurídico-militar. Já o Diário Mercantil, no mesmo período, produziu três matérias de caráter pouco informativo, porém, acusatórias contra os processados. Todavia, nenhum dos dois jornais informou o seu público a respeito dos envolvidos e muito menos sobre a sentença final do processo. Com relação ao manuscrito Até Sempre 3 o silêncio fora absoluto, apesar das graves e incisivas denúncias de torturas e arbitrariedades.
Por conseguinte, ao recuperarmos o conteúdo dos processos jurídico-militares, em que são narrados os julgamentos de vários presos políticos, os manuscritos dos presos políticos e os jornais clandestinos dos militantes, e cotejando-os com as notícias divulgadas pelos dois jornais juiz-foranos, observa-se a incapacidade da imprensa local em relatar as denúncias que os próprios presos políticos explicitavam durante as audiências nos tribunais militares, tentando aproveitar a presença de jornalistas para fazer chegar à opinião pública as mensagens de resistência. Para esses presos, que tentavam denunciar os abusos dos quais eram vítimas, não houve o respaldo dos jornalistas; assim, eles próprios tiveram, então, que se organizar para criar suas próprias redes de comunicação. São justamente essas frágeis redes que possibilitaram que as denúncias de tortura e arbitrariedades do regime ditatorial ganhassem o exterior.
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Ramsés Albertoni é professor e pesquisador do PPGCOM/UFJF.