Anos atrás, quando fazia uma série de reportagens em Alagoas sobre pistoleiros de aluguel, ouvi de uma promotora de Justiça uma frase que jamais vou esquecer. Ela disse: “Aqui não tem bala perdida, todas têm endereço certo”. Fazia referência ao uso recorrente de matadores de aluguel para resolver as desavenças pessoais, políticas e econômicas nas cidades e rincões alagoanos. Lembrei-me dessa frase ao constatar que não passa uma semana sem que não esteja em lugar de destaque nos jornais a morte de pessoas no fogo cruzado entre policiais e quadrilheiros ou mesmo na disputa entre bandidos por pontos de venda de drogas. E os mortos são sempre os mesmos: crianças, adolescentes e trabalhadores das favelas das capitais do país, em especial Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP) e Salvador (BA). Escrevemos que são mortos por balas perdidas durante os tiroteios. Mas, a rigor, não são balas perdidas, como explicou a promotora de Alagoas. Todas têm o mesmo endereço: moram nas favelas. Trocando em miúdos. Nas últimas duas décadas, os criminosos estruturaram suas quadrilhas, aperfeiçoaram os sistemas de lavagem de dinheiro, incrementaram o contrabando de armas sofisticadas e potentes e aumentaram significativamente o volume do comércio de drogas, especialmente as que dão maiores lucros, como a cocaína e as sintéticas. Também se infiltraram nas organizações policiais e, vez ou outra, conseguem eleger parlamentares.
Enquanto isso, o aparato policial governamental, especialmente as polícias ostensivas, não conseguiu se organizar nacionalmente, desmontou os seus serviços de inteligência e insiste em derrotar os quadrilheiros fazendo batidas nas favelas com o uso dos caveirões (carros blindados) e de atiradores em helicópteros. E tem como braço político no Congresso a Bancada da Bala (um senador e 14 deputados), formada por ex-policiais e oportunistas defensores de teses exóticas para a segurança pública – há matérias na internet. O perfil da Bancada da Bala dá uma pista importante para se entender a atual situação da segurança pública. O senador do grupo é Flávio Bolsonaro, do Rio de Janeiro, filho do ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL), um parlamentar comprometido com as ideias golpistas dos saudosistas do golpe de 1964 ainda incrustados nas Forças Armadas. Entre os 14 deputados da frente, 13 são ex-policiais que defendem, entre outras coisas, a flexibilização do porte de armas, que facilita o acesso a fuzis e metralhadoras pelos quadrilheiros – como já foi demonstrado em investigações feitas pela Polícia Federal (PF). Aqui lembro o seguinte: durante a ditadura militar (1964 a 1985) as polícias civis, militares, federal e rodoviária eram forças auxiliares dos órgãos de repressão do regime militar, como o extinto Serviço Nacional de Informações (SNI). Muitos presos políticos foram torturados e mortos em dependências policiais – há matérias, livros e muitos documentos sobre o assunto disponíveis na internet. Pode parecer exótico o que vou afirmar. Mas em minhas andanças pelo Brasil ainda encontro em postos-chave das secretarias dos estados pessoas dos tempos da ditadura ocupando cargos que lhes dão acesso a influenciar a montagem de políticas públicas de segurança. A ditadura militar acabou há 38 anos. Mas os saudosistas e militantes da extrema direita andam por aí e têm influência. Vou lembrar a lambança que ajudaram a armar em 8 de janeiro, quando bolsonaristas radicalizados quebraram tudo que encontram pela frente no Congresso, no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal (STF), na Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF) – há matérias disponíveis na internet. Nos dias atuais, o treinamento de um policial militar é muito semelhante ao de um soldado das Forças Armadas. Mas a missão do policial militar não é a mesma que a de um soldado, que é treinado para lutar em guerras. A missão do policial é manter a lei. Mudar essa mentalidade não será fácil. Lembro que quando a ditadura militar acabou os serviços de inteligência das polícias continuaram focando o seu trabalho no monitoramento dos líderes dos movimentos populares e dos partidos de esquerda. Acompanhei de perto essa situação fazendo reportagens sobre conflitos agrários por todo o Brasil. Na época, os órgãos de inteligência policial travavam duas discussões que ganhavam generosos espaços nos jornais: uma delas pregava que os aparatos de inteligência deveriam ser reorganizados para trabalhar na coleta de dados das quadrilhas.
E a outra linha de discussão simplesmente defendia a extinção pura e simples dos serviços de inteligência. Aliás, os defensores dessa posição andaram muito alvoroçados durante o segundo turno das eleições entre o ex-presidente Bolsonaro, que concorria à reeleição, e o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O alvoroço foi por conta da participação do serviço de inteligência da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na montagem de barreiras nas cidades do Nordeste para impedir a votação dos eleitores do Partido dos Trabalhadores – há matérias na internet. Recordo que existia também um grande receio de que as polícias militares do Brasil se perfilassem ao lado dos golpistas. O que prova tudo isso? Primeiro, que não era excesso de preocupação dos repórteres da minha geração (tenho 73 anos) a influência no aparato policial do ex-presidente, que é ligado à extrema direita e aos militares saudosistas de 1964. Como mostrou o comportamento da Polícia Militar do Distrito Federal em 8 de janeiro, existiam motivos para preocupação – há matérias na internet. Felizmente, o grau de profissionalização que já existe nas polícias do Brasil impediu que o bolsonarismo tomasse conta. Como tenho dito. A profissionalização da polícia é um processo que vem caminhando a passos firmes. E exige que nós jornalistas nos interessemos pelo que acontece dentro das academias policiais.
Arrematando a nossa conversa. É comum o repórter encontrar em postos-chave nas secretarias de segurança e academias de polícia profissionais que misturam pregações políticas de extrema direita com a sua rotina de trabalho. Os jornalistas precisam ficar atentos, porque esses personagens costumam jogar cascas de banana no caminho do repórter para que ele escorregue e escreva bobagens. Ouvi certa vez de um cientista social um argumento interessante. Ele disse: “Não serão os caveirões que irão limpar as áreas ocupadas pelas quadrilhas nas favelas. Mas a presença do estado através dos seus serviços”. Eu acrescento. Os serviços de inteligência podem ajudar.
Reportagem originalmente publicada em “Histórias Mal Contadas”
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.