Na América Latina, os anos 1990 foram anos de transições. Transições de ditaduras para a democracia. Transições de guerras internas para a paz e seus compromissos. Em 2019, 2020 e 2021, os sinais são outros: violências policiais, violências populares, contestações de todo tipo põem em xeque regimes apresentados durante muito tempo como democracias modelo. A crônica dos acontecimentos correntes convida a um mea culpa coletivo. No entanto, dispomos para isso de boas lentes?
Essas democracias pareciam exemplares sob todos os aspectos. No entanto, um rumor coletivo antissistema aparece tal como mancha de óleo, testemunhando as repetidas crises populares nestes últimos anos. Todas denunciavam a degradação das condições de vida dos menos privilegiados. Ainda ontem, em 2019, a razão, ainda que indireta, foi o aumento do preço dos combustíveis pelo governo do Equador, e aquele do bilhete do metrô do Chile. Agora, em 2021, foi o novo projeto de imposto que afeta as pequenas categorias médias na Colômbia. Uma indignação social de razões mais gerais abala o Chile há dois anos.
Sem poder exprimir suas reivindicações junto a poderes executivos indiferentes, por meio de parlamentos legislativos sem capacidade de escuta, os eleitores contestam. Eles contestam o sistema ignorando o papel institucional das urnas. Um exemplo flagrante é o do percentual de 59% de abstenção no Chile, onde os cidadãos foram convidados, no 16 de maio de 2021, a se manifestar em relação à Lei fundamental, herdada da ditatura de Pinochet, de modo a colocar um termo nessa herança. Eles contestam descartando os partidos ‘de sempre’. É o que se pode ver no Chile, onde os candidatos ‘independentes’ obtiveram um sucesso enorme nas últimas eleições parlamentares. É também o que se pode ver no Peru, em 11 de abril de 2021, onde os votos dos eleitores foram esparramados, o que levou à seleção de dois candidatos, para dizer o mínimo, fora das normas: o sindicalista Pedro Castillo, que anunciou querer fechar o Congresso; e Keiko Fujimori, investigada por crime organizado. Eles contestam ainda, tomando as ruas, o que por vezes como temos visto ocorre com uma grande violência.
Cada vez mais, os presidentes e os governos decidem as contradições de todo gênero apelando para a força e dispersão dessas manifestações. A polícia, e, às vezes, as forças armadas, afrontam sem maiores preocupações democráticas os cidadãos descontentes. Aqueles que tomaram as ruas no Chile, na Colômbia e no Equador em 2019, no Peru em 2020, e mais recentemente na Colômbia, sabem bem disso. 34 mortes no Chile em 2019, 7 mortes no Equador em outubro de 2019, 3 mortes no Peru em novembro de 2020, e até o momento, na Colômbia, 40 ou 50 vítimas até a metade do mês de maio de 2021. O combate da delinquência assume ares cada vez mais próximos daqueles de conflito externo. No Brasil, como se constatou em um ‘bairro’ do Rio de Janeiro, no Jacarezinho, em 6 de maio de 2021, a polícia militar utilizou um grande aparato e agiu sem luvas de pelica, resultando em consequências trágicas para os habitantes que ali se encontravam. Foram mortas 25 pessoas no confronto à bala, como em tantos outros, semelhante a operações de guerra, nas quais não se leva em consideração as populações ali residentes, e no centro do confronto.
A gestão militar do calendário parlamentar adotada pelo presidente salvadorenho, Nayib Bukele, fornece um fio de Ariadne que permite elucidar as razões do casamento antinatural entre democracia e violência. As forças de ordem constituem hoje um poder ao qual se recorre prontamente para a garantia de uma ‘ordem’ que transborda o tradicional equilíbrio entre executivo, legislativo e judiciário. Brasil e México, duas potências regionais, se engajaram deliberadamente nesta via democraticamente azarada e infeliz, há dois anos. Ambos militarizaram sua legitimidade. O presidente brasileiro Jair Bolsonaro governa com apoio político das forças armadas. Vários generais são membros de seu gabinete ministerial. As forças armadas mexicanas participam da manutenção da ordem desde 2006. O atual presidente, Andrés Manuel López Obrador, prolongou esta situação até 2024. A guarda nacional, corpo de segurança interior criado em 2020, é uma força sob a tutela operacional do Secretariado de defesa nacional, desde 6 de outubro do mesmo ano.
Os momentos de excepcional gravidade social vividos pela quase a totalidade de países latino-americanos nestes últimos tempos estão na origem das disfunções democráticas? Sua coincidência nos interpela e permite propor uma chave de compreensão. A democracia resgatada há mais ou menos 30 anos, da Argentina a El Salvador, reestabelecia as liberdades fundamentais. Porém, em momento algum, colocou na mesa institucional a necessidade de se construir igualmente uma democracia social. Este ‘esquecimento’ foi inicialmente aceito por razões conjunturais evidentes. Era o preço a se pagar por virar a página de Pinochets e Videlas. Os dividendos obtidos da exportação de produtos primários, na primeira década do milênio, mantiveram a euforia democrática. Quando o peso econômico se fez sentir, a ausência do guarda-chuva social jogou bastante areia nas instituições. Os ricos fizeram então a escolha de preservar suas conquistas, bloqueando toda tentativa de fabricar um novo modelo social. Os perdedores de sempre explodiram, como se viu e como se vê, na panela de pressão da democracia formal. Eles exigem o reconhecimento de sua ‘dignidade’, nome dado em 2019 à Plaza Italia pelos manifestantes da capital chilena, Santiago. Nome igualmente dado em 2021 a um local caro aos contestadores da cidade colombiana de Cali.
Uma corrida é deflagrada entre o vírus das violências antidemocráticas e as vacinas do diálogo social. Ela poderia — o Secretário geral da ONU e o Alto Comissário pelos direitos humanos, se mostraram publicamente incomodados, em 4 de maio de 2021 — abrir uma via para o fortalecimento das liberdades fundamentais. Ainda é necessário encontrar, inventar os atores de um diálogo. As direitas, encarnadas pelo chileno Sebastián Piñera e pelo colombiano Iván Duque, não são qualificadas para tal. As esquerdas de outrora, Concertação chilena, PRD mexicano, PT brasileiro perdem velocidade, sem que os novos partidos e correntes dos últimos dez anos, Frente ampla chilena, Correísmo equatoriano, Morena mexicano, PSOL brasileiro, tenham obtido uma legitimidade popular suficiente. A notoriedade adquirida pelos independentes chilenos, em 16 de maio de 2021, assinala ao mesmo tempo uma rejeição a um resultado. O mesmo no Equador, com os surpreendentes 19% de votos obtidos no primeiro turno das eleições presidenciais pelo candidato autóctone e ecologista, Yaku Pérez Guartambe. ‘É tempo’ escreveu em uma carta aberta a um Jean-Luc Mélenchon, crítico de sua posição, ‘de democratizar, de colonizar e romper com o patriarcado da esquerda no Equador e além’.
Texto publicado originalmente em francês, em 20 de maio de 2021, na seção ‘Actualités – Amérique Latine’, no site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original “2021 en Amérique latine: Des démocraties de transition au bout du rouleau”. Tradução de Maísa Ramos Pereira e Luzmara Curcino. Revisão de Pedro Varoni.
***
Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.