Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A cultura do estupro e o “estupro culposo”

(Crédito: Roberto Parizotti/Fotos Públicas)

Nos últimos dias ganhou grande repercussão o caso do processo criminal de estupro de vulnerável envolvendo a modelo Mariana Ferrer e o empresário André de Camargo Aranha. Acerca do caso muito vem sendo debatido e comentado na internet, principalmente por meio de mídias sociais, no entanto pouco se sabe de fato sobre o processo em razão de este tramitar em segredo de justiça.

Nesse sentido, e firme na convicção de que no crime de estupro o segredo de justiça vem para defender o mínimo de integridade e privacidade da vítima (art. 5º, LX, da Constituição da República combinado com art. 201, §6º, do Código de Processo Penal), e não para poupar eventuais estupradores, aliado ao fato de que a própria Mariana já demonstrou o interesse em tornar o processo público (conforme noticiado aqui), bem como que a sentença já circula amplamente na internet, motivo pelo qual pude a ela ter acesso (ver aqui) — posso escrever o presente texto, no intuito apenas de contribuir com o debate e talvez aclarar alguns pontos jurídicos e sociais que não foram ainda trabalhados.

No mais, se o intuito do segredo de justiça era o de proteger a vítima, vê-se que esse não atingiu a sua finalidade, então quem sabe na transparência possa-se encontrar um refúgio para repensar os arcaicos ritos da justiça pátria. É após ter firmado essas premissas que passa-se à análise em questão.

No que tange ao caso propriamente dito podemos captar da sentença longa e recheada de palavrório jurídico que o magistrado escorou-se na tese do dito “estupro culposo” para absolver o réu. Então, como primeiro ponto para aclarar, é bom notar que o caso em tela não traz uma condenação do réu, mas sim uma absolvição por falta de provas (art. 386, VII, do Código de Processo Penal). Logo, de rigor dizer que não houve qualquer tipo de reprimenda judicial, mas tão somente uma absolvição por falta de prova pura e simples — tout court.

Como segundo ponto a ser elucidado, cumpre ressaltar que em nenhuma das cinquenta e uma páginas da sentença o juiz usou o termo “estupro culposo”, a despeito de ter se baseado em uma tese que, como explicaremos adiante, passa por esse raciocínio. Nesse sentido, o único trecho que se refere a algo próximo à terminologia “estupro culposo” é uma passagem doutrinária que será abaixo transcrita, ipsis litteris:

“No entanto, nada impede a incidência do instituto do erro do tipo, delineado no art. 20, caput, do Código Penal, no tocante ao estupro de vulnerável, e também aos demais crimes sexuais contra vulneráveis. Com efeito, o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime não se confunde com a existência ou não da vulnerabilidade da vítima. […] Como não foi prevista a modalidade culposa do estupro de vulnerável, o fato é atípico. Esta conclusão é inevitável, inclusive na hipótese de inescusabilidade do erro, em face da regra contida no art. 20, caput, do Código Penal”. (MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado, vol. 3: parte especial, arts. 213 ao 359-H. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2017, p. 72-73). (grifo nosso)

Pois bem, até o presente ponto conseguimos firmar duas premissas, a primeira de que o réu foi absolvido, e não condenado por “estupro culposo” como alardeado em algumas redes sociais, e a segunda de que o raciocínio por trás de um “estupro culposo” foi utilizado para livrar o réu da punição. Passemos a analisar, agora, qual foi efetivamente o crime imputado ao réu no processo.

Do quanto se pode depreender da sentença verifica-se que o Ministério Público fez sua peça acusatória (denúncia) baseada no tipo do art. 217-A, §1º, do Código Penal — ou seja, estupro de vulnerável, e não no art. 213 do Código Penal — que seria o crime de estupro de fato. A questão pode parecer inócua, mas não é.

O crime de estupro de vulnerável — do qual o réu foi acusado — não depende da análise do consentimento da vítima. Explico, nesses casos, considerados mais graves pelo legislador (e por isso a pena maior — 8 a 15 anos, em vez do parâmetro de 6 a 10 anos do estupro “simples”), ocorre uma ficção legal pela qual presume-se de maneira absoluta — independentemente de prova em sentido contrário — que a vítima não pode consentir. Ou seja, nem se analisa se a vítima queria ou não fazer sexo, pois nas hipóteses do art. 217-A e §1º o legislador partiu do pressuposto que alguém que estivesse nas condições descritas não teria como consentir. Vejamos a letra da lei:

“Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.” (grifo nosso)

Para o juiz sentenciante o que ocorreu foi a não comprovação da ciência, por parte do réu, que a vítima estava em um dos estados do §1º do art. 217-A do Código Penal — e com base nisso, a absolvição em razão da aplicação da regra do “erro de tipo” — que no direito penal funciona como mecanismo de proteção para aquele que não conseguiu bem compreender a realidade dos fatos. Em sendo assim, o art. 20, caput, do Código Penal exclui o dolo (a vontade) do agente, extirpando a própria ilicitude da conduta, salvo nos casos de crimes que admitam a penalização por culpa. Aqui reside a confusão acerca do “estupro culposo”, pois caso existisse essa modalidade de estupro de vulnerável (não há atualmente em nosso ordenamento), poderia ser penalizado o réu pelo estupro ainda que na modalidade culposa — mais especificamente a culpa imprópria, que seria aquela decorrente da descaracterização do dolo em casos de erro de tipo, e não aquela do art. 18, II, do Código Penal (imprudência, negligência ou imperícia).

Até agora a análise foi meramente daquilo que foi colocado nos autos do processo. Da leitura apenas do quanto exposto é possível, em alguma medida, convencer algumas pessoas de que a absolvição seria a medida de rigor. Ocorre que, a partir de agora, mostro a desconstrução da sentença e o afloramento dos reais fatores de decisão a ela subjacentes.

O primeiro ponto que eu gostaria de pontuar é a necessidade de quebrar-se o “mito” da imparcialidade dos juízes. Simplesmente é impossível a existência de um juiz que não deixe transparecer em suas sentenças, e em alguma medida, em todos os atos que preside, pontos extraídos de sua vivência e eventuais experiências pessoais e sociais prévias. Isso é até positivo no sentido de possibilitar um aumento na pluralidade de olhares sobre determinadas temáticas, mas para casos como o de Mariana Ferrer — que tratam do estupro no Brasil — acaba-se por impor à vítima todo o peso de ter um magistrado que foi criado e educado em uma cultura patriarcal, machista e opressora.

Nesse sentido, a vítima quando vai às portas da Justiça não luta apenas para ter a sua versão dos fatos realmente ouvida, mas luta também contra todo um ranço que vem acompanhando a sociedade brasileira desde a colonização portuguesa. Fica realmente difícil para uma mulher sozinha conseguir reverter todo um arcabouço social e jurídico pensado para violá-la das mais diversas maneiras, sejam diretas ou indiretas. O próprio vocabulário do estupro de vulnerável mostra esse ranço, pois o texto legal fala em impossibilidade de oferecer resistência, o que é uma concepção deveras arcaica, levando em conta a conotação de levar a mulher a lutar pela não ocorrência do estupro, sendo certo que bastaria que esta estivesse impossibilitada de, em razões de sua situação de vulnerabilidade momentânea, dizer não, ou seja, dissentir, discordar.

Estabelecido isso bom dizer que em alguma medida houve o descarrego, por parte do sistema e de todas as autoridades envolvidas no caso, de seus preconceitos íntimos, e nem tão íntimos — considerando-se a fala do advogado do réu (ver vídeo da humilhação pública por este promovida aqui) — em cima da vítima do crime de estupro de vulnerável. Aliás, vale afirmar que, diante do verdadeiro show de horrores da audiência, que poderia muito bem ter saído de algum dos cantos do inferno de Dante devido ao grau de sadismo e crueldade, até mesmo foi instaurado procedimento disciplinar no CNJ para apurar a conduta do juiz condutor, no caso o sr. Rudson Marcos, que durante todo martírio da vítima não interveio mesmo quando instado a tal. Tal fato gerou até mesmo comoção por parte do Ministro do STF Gilmar Mendes, que classificou as cenas da audiência como estarrecedoras (ver aqui).

Cumpre ressaltar que a atuação do CNJ deu-se de ofício, e apenas após a ampla cobertura midiática do caso, mostrando o quão importante é a pressão popular para coibir os abusos cotidianos que as mulheres sofrem dentro e fora dos tribunais. Por ser bem esclarecedora, vale transcrever passagem do documento inicial da reclamação disciplinar, confira:

“Causa-nos espécie que a humilhação a que a vítima é submetida pelo advogado do réu ocorre sem que o juiz que preside o ato tome qualquer providência para cessar as investidas contra a depoente. O magistrado não intervir, aquiesce com a violência cometida contra quem já teria sofrido repugnante abuso sexual. A vítima, ao clamar pela intervenção do magistrado, afirma, com razão, que o tratamento a ela oferecido não é digno nem aos acusados de crimes hediondos” (para mais informações consultar a notícia da instauração aqui)

Cumpre pontuar que essa via sacra pela qual a estuprada precisa passar para tentar ver a Justiça ser feita é estudada no ramo da Criminologia. Fala-se aqui em processos de vitimização.

Note-se que a palavra vitimização, utilizada aqui de modo técnico, não tem o sentido vulgar atribuído por conservadores, no sentido de a vítima querer inflar sua situação de modo a parecer ainda mais violada. Não. Vitimização na criminologia é o estudo dos tipos de processos que terminam por violar a vítima. Estes podem ocorrer em três níveis, dando lugar à vitimização primária, secundária e terciária. Passemos a cotejar e explicar o que significa cada um deles, bem como a pontuar o papel desenvolvido dentro do caso concreto.

A vitimização primária é a violação que decorre diretamente da conduta criminosa, o que no caso em tela seria toda a violência advinda do fato de ter sido estuprada, maculando sua liberdade sexual e mesmo dignidade como pessoa humana. Entram nessa conta as violências físicas e psíquicas sofridas, o que engloba também eventuais processos depressivos que a Mariana possa ter sofrido. A vitimização secundária, por sua vez, é aquela praticada no âmbito das instituições estatais e dos processos legais incumbidos de apuração, persecução e condenação do criminoso, o que no caso de Mariana pode ser bem exemplificado pela forma como foi tratada em audiência, bem como pelo revolvimento de todo um histórico pessoal que em nada ajuda a saber se houve ou não estupro (como por exemplo as discussões sobre as fotos que a vítima tinha tirado durante sua vida). O foco para diferenciar esse nível de vitimização é o locus onde ela ocorre — nesse caso, no âmbito dos procedimentos de apuração do crime. Por fim, mas não menos importante, temos a vitimização terciária, qual seja aquela sofrida nas instâncias sociais e comunitárias em que a vítima habita e transita. No caso de Mariana podemos citar como exemplo desse tipo de violência todos os ataques e perseguições que esta vem sofrendo nas redes sociais, tendo sido xingada por diversas vezes, perenizando seu sofrimento, expandindo-o para sua vida social.

Falando em termos de política criminal, se a moda de aplicar o erro de tipo para estupro de vulnerável pegar, o que teremos será um verdadeiro desastre. Com efeito, não bastassem os já alarmantes índices de cifra negra — quantidade de crimes ocorridos e que sequer chegam ao conhecimento das autoridades (para se ter uma ideia estima-se que apenas 10% dos casos de estupro cheguem pelo menos a uma instância formal — ver mais aqui) — agora as mulheres que forem denunciar a ocorrência do estupro de vulnerável terão ainda que se preocupar se o Ministério Público será capaz de conseguir fazer a prova de que a pessoa que as estuprou sabia que estavam sem condições para consentir. Logo, mais um reforço para não noticiar o crime e evitar o martírio que o Judiciário reserva para as vítimas de estupro.
Ou seja, o que se tem é a criação de mais um perigoso precedente para os direitos das mulheres, até porque são estas as que mais sofrem com a violência sexual no Brasil. Segundo o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2018, ocorreram em média 180 estupros por dia no Brasil, sendo 8 a cada 10 das vítimas do gênero feminino (ver notícia aqui). Logo, ser mulher no Brasil é, por si só, além de um ato de resistência, um ato de sobrevivência.

Do quanto já exposto acima vê-se que o caso é bem maior que a alegação de estupro de vulnerável em si, pois acaba englobando diversas facetas ainda não exploradas. Todavia, e para que fique claro, da leitura da sentença judicial é possível ver severas contradições nas declarações do réu (que alega firmemente que não ejaculou, o que é cabalmente desmentido pelas provas de presença de sêmen nos autos), bem como forte grau de parcialidade no depoimento das testemunhas (muitas delas que trabalhavam no local onde ocorreu o crime — e que portanto temem eventual represália por parte de seu contratante).

Como se não fosse o bastante, a palavra da vítima, que ganha maior relevo em casos como o crime de estupro, deve ser tomada como primordial — uma vez que o estupro é crime que usualmente ocorre a quatro paredes (como o caso em tela), não deixando, via de regra, testemunhas. Do quanto a vítima narrou pode-se extrair uma versão muito mais coerente que a do réu, o que, à luz do acima dito, e das demais provas constantes dos autos (pelo menos as referidas na sentença), permitiriam facilmente uma condenação.

Por fim, confesso que preferia não ter que escrever um texto como o de hoje, mas a magnitude dos fatos, a quantidade de desinformação e o nível de violência contra a mulher no Brasil não me deixaram outra opção. Dedico esse texto a todas as mulheres do Brasil, que são verdadeiras guerreiras e que tem de lutar contra um sistema tão opressor e severo com elas quanto o nosso. Mais especificamente quero agradecer a todas que de alguma forma tocaram e tocam minha vida, moldando e me fazendo ser o que sou hoje. Muito obrigado: Daniela, Miriam, Lauren, Helena, Judith, Irene, Maria José, Teresa, Adriana, Celina, Elisabete, Claudia, Maria, Isilda, Bianca, Giovana, Marcela, Julia, Carol, Edna, Sabrina, Bruna, Camila, Aline, Luciana — dentre inúmeras outras que, por falha da minha limitada memória, não figuram aqui.

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Paulo Schwartzman é escritor e estudioso na área de Estudos Culturais, Estudos Brasileiros e Direito, é também servidor público com especialização na área de Direito. Já trabalhou em diversas instituições públicas e privadas do sistema de Justiça, como em escritórios de advocacia e Defensoria Pública. Atualmente labora como assessor de juiz no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.